quinta-feira, 15 de julho de 2010

Azul claro é a cor da esperança

Hoje nem era dia de postar, mas não dá para deixar passar em branco esse fato histórico importantíssimo, e que merece ser repetido e repostado e comemorado por todos os blogs das amigues, mesmo aqueles que só falam de boate: a Argentina aprovou o casamento gay! Ops, pera lá... casamento gay?! Mas "casamento" não é uma instituição religiosa, não é uma propriedade da Igreja Católica que não pode ser descaracterizada? Não será por isso que a questão não avança no Brasil: porque a militância defende o "casamento gay", expressão que contém em si um absurdo, pois equivaleria a abrir a porta da Catedral da Sé, ou da Igreja Nossa Senhora do Brasil, para que um macho barbudo, braçudo e maludo entrasse no templo vestido de noiva, com véu, grinalda e quem sabe algum adereço emprestado da Lady Gaga para arrematar o look?

De uma vez por todas: NÃO!

Existe o casamento como ritual religioso; aliás, a união entre duas pessoas é ritualizada em várias religiões, não apenas pela Igreja Católica Apostólica Romana. Mas casamento é também um instituto de direito civil, uma relação jurídica entre duas pessoas que, ao se unirem, assumem uma variedade de direitos e obrigações uma perante a outra. Que incluem os deveres recíprocos de respeito, assistência (inclusive financeira) e fidelidade, o direito a ter ou adotar filhos (e o respectivo dever de guardá-los, sustentá-los e educá-los), e também os direitos ligados à herança e sucessão do patrimônio.

Como qualquer outro instituto jurídico, o casamento civil é previsto e definido por uma lei. As leis que vigoram em boa parte dos países ocidentais (excetuando os anglo-saxões) são herança do antigo Direito Romano. Mas as sociedades mudam - e as leis, como produto social e reflexo dessas sociedades, também devem mudar para acompanhá-las (o que ocorre com maior ou menor velocidade, conforme o país). Todos os novos fenômenos sociais precisam de disciplina e proteção jurídica: para ficar num exemplo didático, a internet, que não existia há 30 anos, trouxe novas relações, novos problemas, novos crimes, e tudo isso precisa ser regulado por novas leis.

A definição clássica do casamento civil, cunhada em um período heterocentrista, contemplava apenas a união entre homem e mulher, consagrada na redação de boa parte dos códigos civis. Na medida em que a constituição das famílias passou a incluir formatos diferentes do modelo papai-mamãe-filhinhos, os ordenamentos foram evoluindo para também contemplar essas novas configurações: mães solteiras, famílias recombinadas pelos novos casamentos de pais divorciados... e casais do mesmo sexo. Assim, em alguns países, a atividade legislativa passou a rever a definição clássica de casamento, passando a permitir que esses novos casais desfrutassem das mesmas garantias (e responsabilidades!) dos casais heterossexuais. É "casamento gay" mesmo.

Foi exatamente isso que aconteceu nesta madrugada na Argentina: o Senado deles aprovou um projeto de lei que alterou a definição do casamento no Código Civil argentino, substituindo "homem e mulher" por "contraentes". Só falta a sanção de Cristina Kirchner - mas a presidente já se posicionou a favor da medida, ou seja, a vitória é dada como certa. Com isso, se desejarem, dois homens ou duas mulheres, em todo o território argentino, poderão se unir e usufruir dos mesmos direitos que qualquer outro casal teria, incluindo herança e adoção. Não parece algo tão simples, tão elementar? Sim, parece e é. E às vezes é difícil entender por que um direito tão básico é negado em tantos outros países, incluindo o Brasil. A Argentina foi o décimo país do mundo e o primeiro da América Latina a dar esse importante passo em direção à igualdade e à justiça.

Mas calma: antes de sair por aí falando que a Argentina é muuuito mais moderna, que eles estão aaaanos-luz à nossa frente, e blá blá blá, vamos olhar isso mais de perto? Não foi uma conquista de mão beijada. A vitória foi apertada, por 33 votos a 27, não sem ampla resistência dos setores mais reacionários da sociedade. Lá também existem lobbies religiosos, inclusive evangélicos, que se organizam e fazem barulho - a ponto de juntarem 50 mil pessoas numa passeata em frente ao Congresso, na véspera da votação. Lá também existem pessoas públicas que fazem discursos demagógicos, claramente mal-intencionados, para semear a intolerância. Mais ainda: o segundo maior jornal da Argentina, o conservador La Nación, passou os últimos dias em uma maciça campanha contra o casamento gay, publicando sucessivos editoriais e reportagens com argumentos pelos quais ele não deveria ser aprovado - tinha até fundamentos pretensamente "científicos", do tipo "estudos afirmam que crianças adotadas por casais gays podem ter depressão".

Vocês têm noção do que significa isso? É como se um jornal do tamanho do Estadão fizesse uma lavagem cerebral diária contra o avanço dos direitos gays. E no entanto... apesar disso... mesmo com a ofensiva do jornalzão... e com os lobbies dos religiosos... os direitos gays venceram. Isso deve servir para a gente ter a esperança de que um dia também chegará lá. Afinal, os problemas e obstáculos não são muito diferentes lá e cá. E o próprio efeito da decisão argentina aqui deve ser bem positivo, influenciando nossa opinião pública e, quem sabe, deixando os nossos políticos (cuja "consciência" só enxerga o lado eleitoral) mais à vontade para votar a favor dos nossos projetos. E olha que esses projetos - que falam apenas em união civil - são bem mais modestos e tímidos do que o argentino...

24 comentários:

Rafael disse...

Tava acompanhando tudo isso e desde a semana passada ensaio colocar no ar um post debatendo justamente a questão de como se posicionam as pessoas que querm tanto comemorar a vitória que os argentinos conseguiram ontem.

Hoje existe um debate no brasil, mas acho que ele está centrado em veículos de comunicação, mas não vejo qualquer tipo de outra manifestação mais ativa com objetivo determinado e não ideias pulverizados (a parada já oferece isso).

Acho que a aprovação acontecendo aqui do lado e pequenos movimentos de pressão, sem festa, carro de som, asas de anjo ou outras parafernálias, poderiam começar a acelerar a discussão por aqui. Algum tipo de manifestação pacífica, mas que chame a atenção e conscientize de que ninguém quer tirar fotos vestido de noiva na N. S. do Brasil, mas apenas o reconhecimento de uma união pelo estado (em tese laico).

Bel Ami disse...

Arrasaram!

Parabéns pelo texto Thi! Sempre arrasando heim. Sou seu fã!

Beijos!

Alex Bez disse...

Thiago,
adorei o post!
mas...não vou conseguir resistir a pergunta: como advogado, vc sabe se nós brasileiros, podemos casar em território argentino, rsrs???
Já imaginou, casar em Buenos Aires e fazer a recepção em SP?

abs,

Thiago Lasco disse...

Alex Bez: o casamento só produzirá efeitos dentro do território argentino. Como o Brasil não reconhece o casamento gay, em solo brasileiro ele será nulo de pleno direito. Sacate tu caballito de la lluvia, nene. ;^)

Rafa disse...

É mesmo assunto do momento em blogsville.. acabei de postar sobre isto tb. O seu está incrível (como de costume). Que emoção ver a reação dos argentinos em vigília em frente ao Senado. Espero, logo, comemorarmos isto em terras tupiniquins... Abç!

Paulo Braccini - Bratz disse...

Parabéns aos hermanos ... povo digno, consciente, crítico, mobilizado, culto, etc etc etc ... estamos muito mas muito longe deles mesmo ...

ps: acho q vou levar o DD lá para oficializar nossa relação de 35 years ...

Parabéns pela magnífica abordagem ...

bjux

;-)

Don Diego De La Vega disse...

Já li que Dilma e Serra por aqui são favoráveis ao casamento gay. Será q vão manter a posição? Marina li q é contra.

Sensacional o texto, pra variar.

Queria elogiar também o título, inspiradíssimo. Lindo, simples e tocante. Mega sensível. ;)

S.A.M disse...

Bem eu espero que conosco surta aquele efeito do vizinho que compra um carro novo e o outro se anima a arrumar o seu, que o Brasil mire los hermanos!

Não deixo de estar mais feliz por isso.

Abração!

Anonymous disse...

ESTOU COM UMA INDIGNIÇAO DOS DIABOS, , ESCREVI PARA O ANDRE FISCHER DO MIX BRASIL( QUE TEM UMA RESPONSABILIDADE MUITO MAIOR POR TER UM PORTAL GAY E GANHAM DINHEIRO COM ISSO, A RESPEITO DO VIOLENTO ASSASINATO DO ADOLESCENTE ALEXANDRE ) MAS PARA MINHA SURPRESA NEM UM COMENTARIO MEU FOI POSTADO, NEM OS MESMOS SE DERAM AO TRABALHO DE FAZER UMA MATERIA A RESPEITO OU COBRAR ATITUDES DO RESPONSAVEIS.É VERDADE ESSE TIPO DE VIOLENCIA SO ACONTECE DO MEU MUNDO, NO MUNDO DE JUNIOR E MIX BRASIL, TUDO É COR DE ROSA (COM VIAGENS, MODA, FESTAS E BAFONS) NAO COMPRO ESSA MERDA DE REVISTA NEM PARA LIMPAR O RABO, SEU EDITOR É UM CARA ALIENADO E DITADOR E NAO MERECE O RESPEITO DA CLASSE.

TONY GOES disse...

Sempre preferi o "Clarín" ao "Nación". Agora nunca mais vou por as mãos nesse jornaleco de merda, e torcer para que ele siga o mesmo caminho do "Jornal do Brasil".

Matthew disse...

Ótimo texto. E é uma vergonha ver que países que não tem uma "grande potência" como a do Brasil conseguem se sobressair melhor que este, que apesar de seu tamanho, será sempre o país do futebol e não o país da diferença, que poderia se destacar por motivos eleitorias, estes que com tanto "poder" não são nada, perto de quem tem o mínimo. Parabéns e prometo continuar lendo seu blog!

poor guy fashion victim disse...

As organizações e os gay do Brasil, simplestemente deveriam recusar essa tal de união civil, isso não é mais que continuar a dizer que uma relação entre pessoas do mesmo sexo, é inferior á entre pessoas de sexo diferente. Ou é igualdade ou não há.

Renato Orlandi disse...

Primeiramente parabéns pela clareza do texto, fui linkado para cá do blog do Ruy, que está discutindo o mesmo tema e em breve todos de Blogsville, o que eu penso ser muito bom mesmo. Não tinha noção dos detalhes como o do jornal, mas já imaginava que não foi um direito conquistado de graça, precisamos saber que aquele país tem uma história completamente diferente da nossa também, principalmente de entendimento e conquista da democracia, para depois tentar transportar para o Brasil, mas o que é fato é sua organização e luta... Te sigo. Abraço!

Diógenes disse...

Acho que no Brasil temos que começar um movimento para o casamento - que união civil o que!
Pois uma vez que a união civil for aprovada, os ânimos para aprovar o casamento serão menores.
"Ah, já demos a união civil, eles querem O QUE MAIS?" - como se fosse esmola.

Argh :)

Gustavo Miranda disse...

Aliás, citei no blog que quem quiser se aprofundar no tema, deveria ler seu texto. Beijos

Gustavo Miranda disse...

Sensacional reflexão!

deco disse...

Thiago: vc foi direto ao ponto.O que prejudica muito muito a luta pelo casamento gay é esta besteira de dois barbudos de fraque na igreja e bolo com dois bonequinhos em cima. Sem falar nos casamentos de candomblé patrocinado pela Lucianta Gimenez.Falando um pouco mais sobre seu texto: vc está pronto como jornalista. Já te disse em email uma vez.Vc será muito bem sucedido quando descobrir seu nicho neste ramo.Sua leitura é informativa,saborosa e reflexiva . Abrs

Marcos - SC disse...

Caramba, será que não tem um jornalista gay trabalhando no La Nación pra se revoltar contra essa postura do jornal?

Ah, Thiago... tudo bem que houve manifestações contrárias, que a votação foi apertada e que não foi uma conquista de mão beijada, mas eles aprovaram. E isso nos permite falar que sim sim, nesse ponto eles estão aaaaanos-luz à nossa frente.

Eliandro Ramos disse...

Excelente o seu texto, Thiago! Você escreve muito bem!

Thiago Alves disse...

Excelente escrito!

Anonymous disse...

Thiago:
Sou mais um a dar os meus parabéns pelo seu texto sobre a vitória argentina no quesito dos direitos gays.
No nosso encontro de sábado a questão foi tb debatida e saímos de lá com a promessa de unirmos nossos discursos.
DIREITOS IGUAIS
Como bem vc disse, parece óbvio e natural, mas somente 10 países isso acontece (agora com a Argentina sendo a primeira na AL).

Podemos e devemos contribuir para q essa discussão tome corpo no Brasil.
Parabéns e até agosto no nosso terceiro encontro
bj
Maurício

Em cima do armário disse...

Entendo que eles passaram pelo mesmo tipo de dificuldade que passaríamos para aprovar isso aqui no Brasil. Mas me desculpe, não acho que a situação seria a mesma e sim, acho os argentinos mais evoluidos que os brasileiros. Nada demais, um pouquinho que seja rsrs
Nossa bancada evangélica é uma praga muito maior que a deles. Ainda acho o machismo de brasileiro uma coisa latente e hipócrita mas que a sociedade como um todo ajuda a propagar. (inclusive o gays)
PT ou seja lá o partido ou o político, com raras exceções, "apoiam" a causa por puro e simples interesse, mas ainda não vale a pena dar a cara a tapa por um movimento desunido e sem grande força.

Juliana disse...

Oi, Thiago! Não sei se é de praxe pedir autorização de blogueiros para usar seus posts em espaços fora da internet, mas vou fazê-lo mesmo assim.

Quero levar seu post para meus alunos da Educação de Jovens e Adultos. O projeto do bimestre será debate de temas que os alunos consideram polêmicos e o casamento gay entrou em pauta. vou levar pra eles o seu texto e um outro , de um cara que é contra. Tô autorizada?

Acho esse seu post tão lúcido , tão coerente!

Um abração

Thiago Lasco disse...

Tá autorizada, Juliana! Depois volte pra contar como foi :)