Depois de crimes chocantes como os do menino João Hélio e do músico Marcelo Yuka, nesta semana nos chocamos com mais um perturbador episódio de violência gratuita. Ao sair de um restaurante na Lagoa, área nobre do Rio de Janeiro, um casal foi abordado por um grupo de assaltantes armados. Mesmo sem esboçar qualquer tipo de resistência (o que tampouco seria uma justificativa), as vítimas foram levadas em seu carro até a Av. Niemeyer e empurradas do alto do precipício. Só não morreram porque, por sorte, tiveram onde se segurar no trecho do barranco em que foram jogados [para quem não tomou conhecimento do caso, mais detalhes aqui e aqui].
No calor da indignação que um crime como esse provoca, a pena de morte pode parecer uma solução tentadora. Nas cadeias superlotadas, criaturas capazes de tamanhas atrocidades, além não se regenerarem, oneram os cofres do Estado e ainda influenciam presos menos perigosos. Se não arquitetarem com os comparsas soltos alguma fuga cinematográfica, serão liberados para passar o Natal com a família e, provavelmente, cometerão novos crimes (o indulto pode ser uma bênção para eles, mas também é um pesadelo para a sociedade). Melhor proteger os cidadãos de bem e se livrar logo desse lixo tão maldito. Se possível, sem enrolação: às favas com o devido processo legal, afinal monstros não têm direitos humanos. Aos poucos, a gente vai limpando a casa.
Mas a coisa não é tão simples. Quem pensa assim não vê os problemas em que essa solução aparentemente eficaz esbarraria. O mais óbvio deles é a irreversibilidade de uma pena que também pode eliminar inocentes: gente incriminada em ciladas forjadas por outras pessoas (bandidos ou policiais), ou mesmo vítimas das trapalhadas do próprio aparelho estatal (que prende pessoas por engano e depois tem que indenizá-las). Depois que o sujeito já cantou pra subir, meu chapa, não adianta mais reparar a injustiça.
Haveria, também, um efeito colateral ainda mais pernicioso. Hoje em dia, os criminosos já são inconseqüentes e insensíveis; com a pena capital, teriam a certeza de que acabariam sendo executados, e aí sim sentiriam que não têm mais nada a perder. Com a própria vida valendo tão pouco, qualquer resquício de consideração que eles ainda tivessem pelas vítimas - freqüentemente vistas como culpadas, como os "bacanas" que têm o que eles não puderam ter - iria pro brejo. Eu vou morrer mesmo, então por que te daria uma chance? E assim viveríamos num verdadeiro faroeste, e sem direito a galã.
É compreensível que a barbaridade diante de tantos crimes estúpidos nos cause revolta e desejo de vingança - todos nós sentimos uma estranha compensação quando vemos na TV que os bandidos foram mortos. Mas temos que acreditar que não é com mais desumanidade que uma sociedade desumana melhora. A classe média acha que matar o bandido resolve, mas o buraco é mais embaixo. Se a lógica do sistema que alimenta a desigualdade social não for transformada, novas levas de criminosos virão, e não haverá paredão que resolva. E viveremos ainda mais acuados.
13 comentários:
Muito bem argumentado.
Isso sem falar em outros tipos de crimes que também acabam, indiretamente, matando. Como o desvio de dinheiro público.
Um cara que desvia milhões do serviço público de saúde não difere muito desses caras que jogaram o casal do precipicio.
Se fosse matar essa gente toda não ia sobrar quase ninguém nesse país. Ia ser um faroeste mesmo.
Concordo com seus argumentos, já cheguei a ser a favor da pena de morte, hoje acho que seria a favor de que presos, fossem obrigados a trabalhar forçado pelo bem da humanidade.
Mas embora possa parecer um pouco nazista, eu acho que deveria ser feita uma limpeza em todas as penitenciarias e recomeçar de novo. Algo como o diluvio.
abs
Poderiam começar com a descriminalização das drogas, acabando com o tráfico, que deve diminuir a violência.
***
Acabei de indicar um selo para ti. Da uma passada no post de hoje e resgate-o.
abrsss
Thiago,
acabei de voltar de um periodo de 04 semanas em Vancouver no Canada, e sabe o que mais me chamou a atenção por lá? os indices (quase inexistentes) de violencia e criminalidade. Em conversa com os locais, descobri q as leis canadenses são ultra rigorosas para qq tipo de crime e NÃO existe (ou não se tem noticia) policiais corruptos. Voltei para o Brasil com esta certeza, o que fode aqui neste pais de merda é a corrupção em quase todas as esferas do poder, e isso não vai mudar nunca!
E com a pena de morte no Brasil os únicos a morrer seriam pretos e pobres...
xoxo
alex bez
E em Vancouver qualquer um fuma um beck na rua.
Mas aqui isso não pode acontecer (cof cof) pq os maconheiros iriam agredir os velhinhos.
Perfeito, mas as duas últimas frases resumem a origem do problema. A "lógica do sistema" é também a lógica elitista dos que ignoram a miséria e a barbárie enquanto estão distante dos olhos, restritas aos limites das favelas. A brutalidade praticada contra um João Hélio, que tanto choca, é comum no cotidiano dos bolsões de pobreza. Quando vem a público pela mídia a serviço da elite, porque chegou a quem tem dinheiro, causa protestos pela paz de uma sociedade hipócrita ao extremo. Que paz essa sociedade produz? O dinheiro é quem manda nessa lógica.
Concordo plenamente com o BC Guedes. O discurso desse post nos faz crer que muitos pensam nos problemas, mas as soluções são mais profundas... No Rio de Janeiro, e no Brasil como um todo, no interior, no Nordeste, na Amazônia... o que existe de fato é a pobreza extrema. Sem piadas. Haja visto a tal bolsa família, que apesar da corrupção, uso eleitoreiro, e tudo mais, colabora para amenizar a fome, de quem tem fome mesmo. Quem anda de carro, numa grande cidade, já é, de fato um privilegiado. Não é por isso que ele merece morrer, pela mão de outro barbaramente. MAs antes de mandarmos criminosos pro inferno, vamos pensar no inferno que estamos fazendo aqui, com os despossuídos.
Não acho que pobreza extrema seja a explicação para tudo, mesmo porque a Índia é muito mais pobre e tem índices baixos de criminalidade.
E muito menos problema de "sistema" e "elite", termos de uma esquerda que até o PT já se esqueceu.
Acredito que o problema se originou há muito tempo: o descaso com que os governantes sempre tiveram com a população (lembrem-se que os portugueses vieram roubar nosso ouro e não colonizar) fez crescer uma nação onde é "cada um, cada um". Todo mundo quer o seu, isso é o que importa.
O bandido quer roubar, não interessa se ele é o excluído ou o que está de gravata.
Concordo. Mas essa busca pela origem do problema que você expõe volta a uma conclusão que, novamente, constitui o "sistema" que você rejeita como explicação para o caos em que se vive. É esse o círculo vicioso. E a elite individualista e ávida por privilégios nasceu exatamente em tempos de colonização. Uma colonização baseada na exploração da terra e de trabalhadores (escravos) e no lema "aos amigos, tudo, aos demais, a lei". Portanto, falamos a mesma língua.
Discussão muito interessante, excelentes comentários dos blogueiros aqui.
só para constar, moro em Salvador, que está com um índice de violência para cada 100.000 habitantes DUAS VEZES superior ao do Rio de Janeiro e QUATRO VEZES superior à cidade de São Paulo. A Bahia é um estado miserável, com o maior índice de analfabetos. Logo, um dos mais violentos também. Recife é a capital da violência, e também é super desigual.
Canadá não é um bom exemplo, porque lá todo mundo ganha bem, a lógica indivualista é outra, a consciência é outra.
A reforma no sistema penitencial brasileiro é preemente, mas ninguém tem interesse em promover isso, porque preso não vota, e porque o eleitorado conservador e/ou menos esclarecido não vê com bons olhos iniciativas mais alternativas.
Verdade seja dita, nenhum sistema penitenciário no mundo é modelo, a começa pelos EUA, que tem 14 milhões de presos, número que cresce a cada ano, apesar da pena de morte.
abraço
Muito lúcido e pertinente suas colocações! Admiro cada dia mais este espaço.
Abraços,
Allan
O penúltimo parágrafo foi perfeito, foi a MELHOR justificativa CONTRA a pena de morte que li até hoje! parabéns.
bjos
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