É A SUA PRAIA? Antes de embarcar, reconheço que não sabia se iria curtir. Nunca fui fã de axé e tive medo de que a experiência se resumisse a uma dança da garrafa coletiva. Mas não foi nada disso. O choque cultural foi bem menor do que eu esperava, e durou só até a segunda vodca. O importante é ir sem preconceitos: encare a coisa como "música pop" (e não é, oras?), baixe a guarda e se deixe levar. As bandas que tocam nos grandes trios são afiadas e constroem linhas de baixo rebolativas, cheias de
groove, muitas vezes tão dançáveis quanto uma boa
house music. Com o diferencial de que a multidão toda sabe cantar o refrão, o que produz um efeito multiplicador de alegria do qual não dá para escapar ileso. Sabe aquele clichê de "todo mundo no mesmo astral, na mesma
vibe"? Não poderia ser mais verdadeiro. Na terça, saí atrás de dois blocos, num total de mais de doze horas seguidas - e fiquei triste quando acabou.
MAS O QUE TOCA AFINAL? Vou reforçar o que eu disse no item anterior. Você não vai ouvir só aqueles chicletes de gosto duvidoso, herdeiros da Dinastia Tchan, que traduzem a nossa concepção mais leiga de "axé music". Claro que eles também marcam presença: são lançados justamente nessa época, para tentar estourar no Carnaval de Salvador e, com isso, ganhar espaço nos programas de auditório da classe C pelo Brasil afora (a pérola de 2011 foi "Liga da Justiça", do Leva Nóiz, com o refrão "
foge foge Mulher Maravilha, foge foge com o Superman"; você ainda vai ouvir essa música, querendo ou não). Por outro lado, o som de cantoras como Ivete Sangalo já está muito mais próximo do pop, um pop genuinamente brasileiro, do que qualquer outra coisa. Além disso, as atrações não se prendem ao seu próprio repertório: estão sempre cantando músicas de outros artistas. O momento musical mais marcante do meu Carnaval não foi nenhum desses hits mais óbvios, do tipo "na boca e na bochecha", mas uma versão de "Toda Menina Baiana", do Gilberto Gil, que Ivete apresentou em frente ao camarote do próprio, e me deixou cantando "ô-ô-ô, ah-ah-ah" por três dias seguidos. Outra bola dentro, também da fofa, foi uma releitura de "Corazón Partío" (Alejandro Sanz) - que me pegou totalmente de surpresa. Tive que me render.
QUEM VEM? Todo mundo: grupos de jovens querendo pegar geral, famílias inteiras que vêm em caravanas do sertão e superlotam apartamentos alugados, crianças, adolescentes, gente mais velha (no Nordeste as pessoas não "baixam a bola" depois de uma certa idade, como em SP), héteros e gays. Nada de guetos: aqui, o povão se mistura mesmo, e a cidade fica em polvorosa. Dentro das cordas dos trios é que rola uma (relativa) segmentação. Por isso, o lance é você fazer aquela pesquisa prévia básica, e então ir montando a sua programação de blocos. Seus critérios de escolha serão: o perfil do público (tô indo pra beijar
moin-to? só quero encontrar paulista e mineiro? recebo Ogum ou seguro o Tchan?), o preço do abadá (que também é altamente relativo, como discutirei mais adiante) e,
of course, a atração que puxará o bloco (caso você tenha um ladinho oculto que adooora Cláudia Leitte, por exemplo).
OSMAR OU DODÔ? Todo mundo está cansado de saber - menos você, que é tão desinformado quanto eu era: os 2 maiores circuitos são o Osmar (também conhecido como Avenida) e o Dodô (ou Barra-Ondina). Alguns blocos fazem apresentações em ambos, em dias diferentes. Mais antigo, o Osmar sai do Campo Grande, com o sol do meio-dia a pino, e percorre as tortuosas ruas do Centro; o Dodô pega a orla, do Farol da Barra até a metade de Ondina, e os blocos saem principalmente à noite. No Osmar, o calor é maior, o trajeto é mais apertado e convém redobrar os cuidados com a segurança; já o Dodô parece um sambódromo, largo, iluminado, refrescado pela brisa do mar - e amplamente televisionado para o Brasil e o mundo. Por outro lado, é mais divertido estar cercado pela multidão humilde, que interage e vibra das janelas dos cortiços puídos do Centro, do que pelo povo insípido dos camarotes da Barra, que olha tudo com cara de tédio, em meio a balões infláveis de bancos e portais de internet. O Dodô é confortável e ultracomercial, o Osmar é
roots e mais autêntico. Na dúvida, vá de Dodô - mas experimente pelo menos um dia de Osmar.
APARTHEID Sim, o Carnaval de Salvador tornou-se megacomercial e esse é um caminho sem volta. Muita gente reclama que antigamente era melhor, que o sentido de festa popular se perdeu, com as pessoas divididas em castas, dentro e fora das cordas, com ou sem abadás... Confesso que tenho
mixed feelings em relação a isso. Por um lado, seria lindo se todos que quisessem pudessem ter acesso. Os próprios cordeiros - os cafuçus contratados pelos trios para segurar as cordas e garantir que os penetras não entrem - pedem esmolas a você durante o percurso, fazendo você lembrar que faz parte de uma elite. É triste, e falo isso sem qualquer demagogia. Por outro lado, sem corda e sem abadá, a coisa toda se tornaria impraticável - seria tanta, mas tanta gente, que os trios não sairiam do lugar. Quem não tem bala na agulha tem que se contentar com a "pipoca" (assistir ou seguir os trios no aperto do lado de fora das cordas), ou então esperar a quarta-feira de cinzas - quando o tradicional Arrastão, sem cordas, reúne estrelas como Ivete e Timbalada.
MADRINHA DAS GUEI Acredite se quiser: Daniela Mercury não pendurou as chuteiras em 1992, após "O Canto da Cidade". Ela continua gravando discos, vende superbem na Bahia e, mais do que isso, comanda um dos blocos mais fervidos do Carnaval baiano, o Crocodilo. Enquanto nos outros blocos os gays se infiltram, aqui eles são absoluta maioria. É um verdadeiro mar de homens desfilando e se beijando em plena avenida, a céu aberto, sob os olhares dos camarotes e das câmeras de tevê. Não que o público se choque - mas várias bees de Salvador não seguram a onda de tanta exposição pública e acabam evitando esse bloco, tão notoriamente gay que o abadá em si já vem com um carimbo "SIGNIFICA". Daniela se comporta como uma verdadeira mestre-de-cerimônias: começa com um show de delicadeza, pedindo que foliões, cordeiros e pipocas respeitem-se uns aos outros, e depois conduz a massa com absoluto domínio e um repertório dançante (zum-zum-ba-ba!), que funde épocas e estilos. A noite passa voando. O Crocodilo sai entre domingo e terça, sendo que a primeira noite é a obrigatória, em que todo mundo vai, e a última também é especial pelo clima de despedida. Segunda é a noite que se convencionou pular. [
UPDATE: para o Carnaval de 2012, a primeira noite do Crocodilo foi transferida do domingo para o sábado].
MADONNA BRASILEIRA Dentro e fora do Carnaval de Salvador, poucas cantoras do universo pop brasileiro desfrutam hoje de um status tão privilegiado quanto Ivete Sangalo. Na folia soteropolitana, primeiro ela se apresenta como contratada em outros trios (Salvador na sexta, Cerveja & Cia. no sábado), depois comanda três dias no seu próprio bloco, o Coruja (domingo e terça no Osmar, segunda no Dodô). É uma reunião de fãs: diante da simples visão de Ivete no topo do trio, o público sorri abobado e completamente entregue. Sejamos justos: Ivete é linda, tem carisma e está acumulando um repertório respeitável de sucessos. E pincela umas
covers bem bacanas, como eu disse mais acima. Só que ela canta no máximo uns 30% da letra: ela manda um verso, joga o microfone pro público e só vai completar o trabalho no final da estrofe seguinte. Assim, até eu faço cinco apresentações seguidas, meu bem. Fui no último dia (terça). No começo do bloco, eu via tantas meninas de rabo de cavalo que pensei que tinha caído em algum fretamento para a Disney. Aos poucos, os gays foram aparecendo, a bebida foi subindo e começaram a pipocar uns beijos aqui e ali. A pegação é mais esparsa, mas o pessoal é beeem mais bonito do que no Crocodilo.
MUITO MAIS Nessa minha primeira experiência, procurei escolher blocos que tivessem alguma presença gay e um clima mais solto. Afinal, não queria correr o risco de me sentir um peixe fora d'água. Ivete e Daniela são as duas divas, ao ponto de cada
biu local ter e defender a sua preferida (uma coisa "Britney vs. Aguilera"). Mas o Carnaval de Salvador vai muito além dessa dualidade: há outras atrações tão ou mais bombadas, como Cheiro de Amor, Banda Eva, Chiclete com Banana, Asa de Águia, Olodum e Timbalada. Isso sem falar do célebre afoxé Filhos de Gandhy (só Freud explica por que as mulheres têm taaaanto fetiche por aqueles homens vestidos de baiana do aracajé!), dos blocos eletrônicos (neste ano foram três: David Guetta, Will.I.Am/Skol e Liberty, um bloco tribal-GLS que foi
o erro) e dos blocos menores, que desfilam sobretudo no circuito Batatinha, no Pelourinho. Da próxima vez, não vou abrir mão de um Crocodilo e um Coruja, mas pretendo dar uma diversificada.
É DIA DE FEIRA Um dos maiores inconvenientes é o preço dos abadás, especialmente dos blocos de artistas mais bombados, como Chiclete com Banana, Asa de Águia e a própria Ivete. Pelas vias oficiais (
Central do Carnaval ou
Axé Mix, conforme o bloco), você chega a desembolsar mais de mil reais por um único abadá, e sem direito a
open bar. Para quem não é
rykah de berço, o jeito é se jogar nas duas feiras de cambistas: no Jardim Brasil (atrás do Shopping Barra) e nas imediações do Aeroclube. A economia pode passar de 80%, especialmente se você comprar mais em cima da hora (afinal, depois que o trio passou, o abadá perde todo o valor). Tenha sangue frio e negocie. Como o pagamento só pode ser em
cash e todos sabem que você estará com os bolsos cheios, vá em grupo e tome cuidado para não ser roubado, especialmente no Aeroclube. Vencida a batalha da compra, é só customizar seu abadá e sensualizar na avenida. Você pode recorrer a uma das inúmeras oficinas espalhadas pela cidade, ou arrasar sozinho com sua tesoura, tomando o cuidado de não cortar o nome do bloco, o logo do patrocinador e as marcas de autenticidade, o que pode inutilizar o abadá. Se estiver com preguiça, apenas passe o abadá por trás da cabeça - pagar peitinho sempre funciona.
SURVIVOR E por falar em dinheiro, se você se deparar com um caixa eletrônico que funcione, aproveite: essa poderá ser sua última chance. Se uma das máquinas for daquelas que só soltam notas de R$2 ou R$5, deixe escorrer uma lágrima de emoção e faça tantos saques quanto for possível: na avenida, dinheiro miúdo vale ouro, porque é muito difícil estender uma nota de R$20 e esperar o troco quando se está bêbado, no meio de uma multidão tomada por Iansã. O negócio é jogo rápido: com uma mão você estende a nota, com a outra pega a bebida e desaparece. Ah sim, é
fun-da-men-tal andar com um daqueles porta-dólares por baixo da roupa: nele você leva seu dinheiro, sua chave e um documento velho. No bolso, não leve nada. E nos pés, um tênis velho e confortável - que ficará imprestável, portanto traga também um par sobressalente para os momentos off-bloco.
CAMAROTES Outra maneira de curtir a festa é comprar ingresso para um dos muitos camarotes que ficam dispostos ao longo do circuito Barra-Ondina, e assistir ao desfile dos blocos com mais conforto. Cada camarote é uma festa em si, com comida, bebida e música independente (a cargo de bandas e/ou DJs), o que significa que você pode passar a noite curtindo ali dentro e simplesmente abstrair os blocos, se quiser. Assim como acontece com os trios, há camarotes para todos os gostos e faixas de preço. Fatores para comparar: o tipo de público (desde celebridades até o povo da firrrrma), as atrações (bandas/DJs, que só interrompem o som quando um bloco está bem em frente ao camarote), a comida e bebida (nos mais simples, a bebida é vendida à parte; nos mais caros,
all inclusive, há até sushi e comida contemporânea) e a localização (afinal, um dos grandes atrativos é a visão privilegiada que se tem da avenida, aquela multidão vista do alto é uma cena e tanto). Minha opinião sincera? Vale a pena pegar um camarote naquele dia em que você precisa fazer uma pausa e descansar. Mas, enquanto quem está no camarote
assiste ao Carnaval, quem está no bloco
participa,
protagoniza,
vive o Carnaval. Quando eu olhava lá de baixo os rostos debruçados nos camarotes, tinha a impressão de que ninguém ali estava se divertindo tanto quanto eu.
ABRIGO O melhor dos cenários, na minha opinião, seria você alugar um apartamento na Graça, meu bairro preferido: prédios antigos, apês enormes, perto o suficiente dos dois circuitos para você ir a pé, mas sem nenhum barulho ou muvuca. Caso você fique em hotel, reduza suas escolhas a três bairros: Barra, Ondina ou Rio Vermelho, cada qual com prós e contras. Na Barra, você tem fácil acesso à "largada" do circuito, mas será obrigado a respirar carnaval 24 horas, pois o bairro, que tem poucas ruas, fica tomado de gente, lixo e barulho o tempo todo. Na Ondina, onde ocorre a dispersão, o barulho noturno também pode incomodar - boa parte dos hotéis fica ao redor dos camarotes, por onde passam os trios. Pelo menos você sairá do bloco, exausto, a poucos passos da sua cama. No Rio Vermelho, você terá que se deslocar diariamente para a Barra (e pegar congestionamentos, dependendo da hora e caminho escolhidos), mas você tem a melhor estrutura de bares e restaurantes (na Barra as opções são sofríveis), além de uma rede hoteleira mais recente. Outros bairros? No Carnaval, eu só consideraria se fosse para ficar como convidado na casa de alguém.
BABADO FORTE? Aposto que tem leitor meu que só seguiu o texto até aqui porque estava esperando pela parte em que eu falo dos cafuçus. Pois é, para quem curte essa beleza bem brasileira, a Bahia é o paraíso na Terra - já declarei publicamente por aí que os baianos estão no topo da minha lista de preferências. Os
braus locais ("cafuçu" é coisa de pernambucano, jamais ouse pronunciar esse termo na Bahia, eles acham pejorativo!) são mesmo de babar, colega. Além disso, a capital soteropolitana é a terra dos "héteros que fazem" - aqueles bofes que, na maior discrição, mandam ver mesmo, e nem venha você querer definir a sexualidade deles. No entanto, por incrível que pareça, o Carnaval de Salvador não é tão sexual como alguns podem imaginar. Claro que as pessoas estão ali para se permitir, mas, em sua grande maioria, o que elas querem é beijar, não necessariamente transar. É um clima muito mais puro e brincalhão, de curtir a música, sair com sua galera, beijar muito, dar risada e não ter grandes preocupações, do que um açougue da carne como em outras praças.
RELAXE, MEU REI Aos cri-críticos de plantão: venham vacinados para conviver com os problemas da cidade, sem deixar que eles azedem o seu bom humor. Nesses dias frenéticos, Salvador fica ainda mais suja. É preciso manter-se alerta contra os furtos (mas sem neurose! também não é tão perigoso assim). As avenidas de acesso que formam o yakissoba viário da cidade (Centenário, Garibaldi, Vasco da Gama, Cardeal da Silva, Vale do Canela) freqüentemente engarrafam - escolher o caminho mais livre é pura questão de sorte. O serviço é um dos piores do Brasil, oscilando entre a simples ineficiência e os maus tratos ao cliente. Não espere ouvir um "por favor", "com licença" ou "obrigado" - e, quando você agradecer, tampouco ouvirá resposta. Mas nada disso estraga o brilho da festa. É só você ir com o espírito preparado. Ninguém ali quer receber suas lições de civilidade. E lembre-se: na Bahia, uma hora tem 90 minutos.
COMBUSTÍVEL Salvador tem excelentes restaurantes [
já falei sobre alguns no blog e voltarei ao tema no próximo post]. Nada como pedir um prato com camarão e receber camarão de verdade. Mas vá por mim: nos dias de Carnaval, você dificilmente vai querer perder tempo com grandes deslocamentos e comida que pode pesar no estômago. Se quiser usufruir da gastronomia e das atrações turísticas de Salvador, o ideal seria viajar em outra época, ou pelo menos pegar mais alguns dias antes (lembrando que a festa começa já na quinta, não no sábado!) ou depois do Carnaval. No corre-corre do circuito, você vai ter que se virar com comida rápida de barracas (salgados, pizzas etc.) e os sanduíches e vitaminas do Suco 24 Horas. Provavelmente, sua maior preocupação será o álcool (que é absolutamente essencial, diga-se de passagem). Dentro dos trios, tudo é mais caro: fora deles, se você não curte cerveja e acha as bebidas
ice fraquinhas demais, terá um pouco mais de trabalho até achar uma vodca que seja confiável. Por isso, os mais espertos compram uma garrafa de Smirnoff ou Absolut, gelam em casa e levam para o trio em garrafinhas de água de 500ml, ou naquelas mochilas etílicas do tipo
camelbak.
FOI BOM PRA VOCÊ? Posso afirmar com segurança que essa foi a melhor escolha que eu poderia ter feito para o Carnaval de 2011. Se eu voltarei? Não tenho a menor dúvida que sim. Todo ano? Provavelmente não, porque os preços são salgados demais para o meu bolso [
nem sei como teria sido sem o apoio e a hospitalidade de meu amigo David, a quem deixo meu beijo e muito obrigado!]. E porque eu também curto o Carnaval do Rio de Janeiro e de Florianópolis, cada um do seu jeito. Salvador provavelmente vai entrar no meu rodízio com as outras duas cidades - ainda que o astral de lá seja dez vezes maior do que o da primeira e duzentas vezes maior do que o da segunda. Sem tanto carão, sem tantos guetos, conhecendo gente diferente. Na terça, quando os trios chegavam perto do fim, tocando os clássicos eternos, os foliões felizes e nostálgicos ao mesmo tempo, não querendo que aquilo acabasse... aquilo foi um momento totalmente emocionante, uma sensação que eu nunca pensei que pudesse ter. Foi aí que caiu a ficha que eu tinha realmente entendido o Carnaval de Salvador.