segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Retratos póstumos

Quando nos deparamos com a morte de um ente querido, todos nós atravessamos um período de luto, em que elaboramos e digerimos a perda que sofremos. Cada um tem sua maneira de viver esse processo, mas há um certo comportamento que parece ser muito comum. Temos tendência a construir um retrato póstumo bastante parcial do falecido: nossa memória seletiva filtra ou suaviza os dados desagradáveis e potencializa as virtudes e os bons momentos, pintando um quadro idealizado, que valoriza principalmente o que o morto tinha de melhor. O tempo ajuda a depurar essa memória, e garante que lembremos de quem se foi com saudade e muito carinho. Isso é especialmente freqüente quando, antes de morrer, a pessoa viveu uma fase difícil, em que deixou de ser quem sempre foi (por ter ficado muito doente, por exemplo). Na nossa cabeça, o falecido surgirá sempre em sua melhor forma. É melhor que seja assim.

Mas não é só dos mortos que nós construímos esses retratos póstumos. Também fazemos isso com aquelas pessoas que condenamos à "morte em vida". São pessoas que já foram muito importantes para nós, muito próximas, muito amadas, até que decidiram morrer em nossas vidas, levando-nos a matá-las. Na melhor das hipóteses, é o caso clássico da diferença de timing, quando dois amigos perdem a sintonia e passam a viver em compassos diferentes. Mas há casos bem menos suaves, em que o sujeito surta e simplesmente passa a jogar no time contrário. É como um câncer: uma célula da mesma família de repente se volta contra a própria irmã e passa a atacá-la, feri-la, buscar destruí-la. O contato azeda de tal forma que se torna predatório, leonino e, por isso mesmo, insustentável.

Nessas situações, em que decretar a morte em vida torna-se necessário, o melhor a fazer é usar toda a doçura possível na hora de pintar o retrato póstumo, carregando nos tons alegres, que predominaram no passado. Retratar o morto em vida com generosidade ajuda a minimizar o nosso desgaste, sobretudo quando ele continua pertencendo ao nosso convívio e, portanto, somos obrigados a lidar com sua imagem. Terminado o trabalho, pendura-se o quadro em uma parede qualquer (nunca a principal do recinto), e a vida segue. Com alguma sorte, não haverá motivos para se lamentar: a lacuna deixada será preenchida por outras pessoas, que saberão entregar o companheirismo, a lealdade e a solidariedade que um dia se esperou de quem só ofereceu veneno, rancor e ingratidão. Além disso, a morte em vida tem um diferencial: ao contrário da morte de verdade, ela nem sempre é definitiva. Às vezes, ocorrem inesperadas ressurreições, verdadeiros milagres. Se até o câncer tem cura...

8 comentários:

Fábio Carvalho disse...

Como sempre, Thithi, que texto LINDO! Parabéns.

Mas... "Retratar o morto em vida com generosidade"

Que difícil isso! Quem me dera se capaz; seria mais fácil para mim mesmo, menos amargo, menos envenenado. O pior é que eu sei que o outro está lá, vivendo a vida dele, feliz, leve e saltitante, enquanto eu carrego o peso e a bílis. Problema meu! Quem mandou ser assim, e não superar o passado?

Obrigado pelo texto, e pela esperança de quem sabe, um dia, aprender a ser leve também.

beijos e felicidades! vc merece MUITA felicidade meu querido amigo!

abs
Fàbio

Cris Morais Carneiro disse...

Quantos de nós já vivenciamos essa morte em vida, não é? Você ofereceu o melhor remédio para lidar com isso, sem dúvida alguma.

Já a morte propriamente dita continua sendo um tabu, mas como vc viu "A Partida" eu não tenho mais nada para acrescentar.

Os seus textos estão cada vez melhores, mais maduros, revelando o Thiago sem serem parciais.

Até nos dias mais cinzas vc consegue brilhar!

Te amo,
Cris.

Mauri Boffil disse...

mto lindo...
mas e preciso ter força para superar esse luto. coisa que eu acho que ainda n tenho.

Ivo disse...

Lindo texto, querido. Soube da notícia há pouco, acompanhando pelo Facebook e pelo blog. Estou aqui pro que precisar. Grande beijo.

Junior disse...

Mais uma pérola... a comentar devidamente logo mais.

Aline Espíndola e Fabiana Carvalho disse...

Seu texto fez-me refletir bastante sobre a perda do timing nas amizades. Muito bom!

Thiago Lasco disse...

Para um comentário ser publicado, ele não precisa concordar com o que escrevo. Mas precisa manter o RESPEITO e a EDUCAÇÃO. Insultos e palavras de baixo nível não têm lugar neste espaço.

Anonymous disse...

Ao contrário do que vc escreve, Thiago, acho que as mortes verdadeiramente definitivas são aquelas que acontecem em vida.

Meus mortos queridos (mortos mortos) vivem em mim. Temos conversas imaginárias e até brigas. Já os que morreram em vida são lembrados não como pessoas, mas como lições, como advertências, como reflexão. Viraram conceito.

Vivi coisas inacreditáveis nesses 40 anos.

A vida é assim, coisas acabam e começam. Os que virão ainda vão nos desapontar para que outros possam vir, e assim por diante. Nem sempre há mocinhos e vilões. A vida real nem sempre é uma teledramaturgia, com personagens chapados e situações banais.

Mas uma coisa é certa. Mesmo que os desencontros sejam inevitáveis, o milagre mais maravilhoso é o encontro indissolúvel que temos com uns poucos. Não podemos, nunca, estar fechados aos "novos poucos" que pintam por aí - em geral sem pedir licença ou prometer muita coisa. Porque é ali que mora o milagre.