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Hell & Heaven 2010. Pela segunda vez, o
resort Costa do Sauípe, no litoral norte da Bahia, hospeda um festival de música e festa para o público gay. Dois hotéis do complexo são fechados para o evento, divulgado ao longo de doze meses por meio de ações promocionais nas principais capitais e na mídia especializada, atraindo homens de vários estados brasileiros, dispostos a se jogar
em festas alucinantes. "Qual é o seu pecado?", provocava o mote do H&H. Depois de anos de estrada em Carnavais, Réveillons e Paradas no eixo SP-Rio-Floripa, o que esperar e como se preparar para um trem desses? O melhor é respirar fundo, cortar os carboidratos, comprar um bom suprimento de camisinhas e já deixar o nome na fila de transplantes de fígado pelo SUS: a jogação tem tudo para ser intensa
. Afinal, a fórmula é a mesma de sempre, só que dessa vez enfeitada com uns coqueiros baianos. Certo?
Pois não foi bem assim.
Para começar, o H&H não foi, nem de longe, tão pesado como eu imaginava. Pensei que seria um turbilhão
nonstop das 12h de sexta às 12h de domingo, tipo "salve-se quem puder". Mas a programação do evento foi muito bem amarrada, intercalando períodos de festa e de descanso. Todo mundo pôde fazer todas as refeições (comendo apenas o necessário, já que o bufê era medíocre, com exceção do café da manhã) e também dormir, sem comprometer a farra. É lógico que dançar e tomar o sol forte do Nordeste cansam o corpo, mas cheguei em casa muito mais inteiro do que nas minhas voltas do Carnaval no Rio ou Florianópolis. E olha que, antes do Sauípe, eu já estava me jogando em Salvador havia uma semana.
Outra surpresa: as festas cumpriram seu papel, mas não foram os pontos altos do H&H. O que se fazia era simplesmente montar um palco e um telão na área da piscina de um dos hotéis (e, na festa seguinte, na piscina do outro, dando uma ideia de variedade), ligar o som e chamar os DJs. Sem qualquer refinamento (o tal selo argentino só deve ter emprestado o nome), sem aquele clima de grande produção que marca as tardes de Rosane Amaral no Rio e as noites de André Almada em SP. Nem mesmo a festa principal - a noite de sábado, trazendo o
headliner Peter Rauhofer - fugiu disso. A produção poderia ter projetado luzes coloridas nos coqueiros, uma ideia simples que teria criado um efeito incrível, mas se limitou a repetir o telão e meia dúzia de luzes sobre as pessoas, que se equilibravam nos desníveis do terreno acidentado para dançar.
Um fator que contribuiu para que as festas não impressionassem tanto: o evento já mantinha um clima festivo o tempo todo. Na chegada ao
resort, o público era recebido para o
check in com house e tribal; depois, na piscina, mais música; chegando no salão para jantar, lá estava Offer Nissim nos falantes para dar uma animada. Por isso, quando começava uma "festa propriamente dita", não havia um incremento de emoção em relação aos períodos "sem festa": o que acontecia era uma mera mudança de cenário. Se eu senti uma diferença maior na noite de sábado, foi pelo aumento do público (os moradores de Salvador tiveram a opção de comprar o ingresso avulso para essa festa), pelo som do Peter (que deu o clima mais encorpado que a noite pedia), e também pelo fato de que aquele era, afinal, o clímax antes da despedida. (E foi mesmo especial viver o amanhecer daquele cenário, com o marzão crescendo diante dos nossos olhos ao som de um Peter inspirado).
Além disso, a pegação também ficou aquém do que se podia esperar ao se colocar um monte de homens gays, bonitos, isolados num cenário daqueles. Enquanto dava meu giro de reconhecimento pelo
resort, eu imaginava o povo indo aprontar na praia de madrugada, se comendo nas moitas e matinhos que enfeitavam as áreas comuns, zanzando freneticamente pelos corredores de um quarto para o outro. Mas não vi nada disso; se chegou a acontecer, então eu estive nos lugares errados, ou na hora errada. Mesmo durante as festas, achei a beijação bem mais contida do que num bom Carnaval - sendo que estávamos no Estado brasileiro onde mais se beija nessas festas, e fiquei lúcido o suficiente para entender o que se passava ao meu redor. (Logo eu, que me fantasiara num quarto de hotel com mais três, fazendo um picante
role play nordestino, sendo a
rolinha de vários
coroné, enfileirados para colocar a
pomba no meu
boga e me dar uma boa
pisa... Só fiquei zen porque já tinha chegado de Salvador pra lá de saciado!)
Mas nem por isso eu deixei de gostar do Hell & Heaven. A experiência valeu a pena e eu certamente repetiria a dose! O espaço do
resort é muito bacana, as áreas comuns são grandiosas e, se a praia não é particularmente bonita para os padrões baianos, é mais do que suficiente para encantar mineiros e brasilienses (esses grupos eram maioria; já baianos e pernambucanos, vi bem menos do que esperava). Meu quarto era bastante confortável, e o outro hotel oferecido era ainda melhor. Sei que não temos que buscar o gueto e sim a inserção social, e blá blá blá, mas foi sensacional ter toda a estrutura do Sauípe só para nós, gays. Isso sim eu considero o grande
highlight do H&H. No café, nas piscinas, em toda parte, todo mundo tranquilo, integrado, falando a mesma língua, vivendo a mesma onda. Reconheço que no final eu já estava até meio enjoado de ver tanto viado junto, mas o evento teve a medida certa. Talvez eu colocasse um dia a mais para o povo poder curtir o
resort (tivemos apenas o sábado inteiro, os outros dois dias foram de trânsito), mas não mais do que isso.
Acima de tudo, preciso reconhecer que o astral do H&H esteve lá em cima o tempo todo. As pessoas pareciam desarmadas, tranquilas. Talvez tenham cansado de seguir à risca a cartilha dos excessos e resolvido simplesmente relaxar e curtir o
resort, sem maiores pretensões. O clima era tão leve, mas tão leve, que eu poderia ter gravado um vídeo compacto do evento e mandado para minha mãe. E o evento foi um sucesso: na reta final, todos os quartos acabaram vendidos, e já estão marcadas duas edições em 2011, em maio (Angra dos Reis) e novembro (Sauípe novamente). Se foi um pouco diferente do que eu imaginava, numa próxima já irei com o espírito mais preparado. No aeroporto de Salvador, na fila do
check in para SP, eu continuava me surpreendendo com mais e mais homens lindos, que também voltavam no H&H e eu nem tinha visto. Todos com uma cara boa, realizados. Talvez a gente possa se reeducar para não ter que beijar todas as bocas e se atracar com todos os corpos para sentir que aproveitou, se divertiu e foi feliz.
[
Foto: Genilson Coutinho/ACapa]