Fui até a janela pela última vez. Apreciei cada detalhe daquela vista que foi o meu horizonte por tantos anos: o Jardim Paulistano, o gramado do Jockey Club, o Shopping Eldorado, as casinhas alinhadas do outro lado da Marginal, o Butantã ao fundo, o prédio da Editora Abril no canto direito do meu campo de visão. Tantas vezes me pus diante daquela janela... para fazer uma pausa do trabalho, falar ao celular, pensar no futuro ou em como seria esse dia, que finalmente havia chegado. Depois de contemplar aquela vista até sentir que tudo tinha ficado armazenado para sempre na minha cabeça, afastei-me da janela e peguei o que tinha sobrado dos meus pertences. Abandonei a minha sala e segui pelo corredor até a entrada. Girei a maçaneta, atravessei a porta pela última vez, e deixei para trás não só aquele escritório como a advocacia. Entre estagiário e advogado, foram treze anos vivendo aquela vida, um ciclo que finalmente tinha chegado ao fim.
Preciso reconhecer que não foi uma vida fácil. Só eu sei o quanto foi duro abraçar um projeto com o qual eu jamais sonhara, um trabalho que não tinha a ver comigo, com a minha vocação, que desperdiçava meu talento. Ser cobrado para vestir a camisa, honrar todas as responsabilidades que me foram depositadas, cumprir o papel que, com toda razão, esperavam de mim. Meus chefes sempre foram pessoas incríveis comigo, sempre fizeram o possível para aceitar minhas limitações. Poderiam ter facilitado muito menos, sido menos tolerantes e mais duros, mas não foram, e por isso serei eternamente grato a eles. Fomos uma verdadeira família ali, e nem a entrada de certos corpos estranhos conseguiu desvirtuar isso.
Houve diversos momentos em que pensei que não conseguiria aguentar mais um dia sequer. Só eu sei o preço que paguei por ter deixado meu tio me influenciar tanto em uma escolha tão errada para mim. Mas a minha hora de partir ainda não havia chegado. Quando finalmente coloquei na cabeça que eu tinha que partir para outra, precisei ter paciência e construir um bom plano de fuga. Mais quatro anos de faculdade de jornalismo, uma transição lenta e gradual para fora dali. Consegui, minha hora finalmente chegou, agora estou livre. Mesmo assim, quando tudo acaba, não dá para evitar uma certa nostalgia.
A verdade é que sou um cara muito saudosista. Sempre fui. Não só com esse lance do escritório. Vivo minha vida como quem dirige um carro rumo ao futuro, mas está sempre com o olho no retrovisor, olhando para trás, para as coisas que já passaram. Estou sempre revisitando meu passado, sempre revivendo momentos, emoções. A música tem um papel crucial nisso, cada música para mim tem uma época, um lugar, uma situação, um momento que fica marcado nela e volta fresquíssimo a cada nova audição. Lembranças de infância, meus tempos de colégio, as viagens que fiz. Dez anos depois que saí da escola, tirei uma tarde e voltei para lá, andei tudo aquilo de novo, me vi criança andando sozinho por aqueles caminhos arborizados na hora do recreio.
Também lembro com saudade dos meus primeiros anos de homossexualidade. O sabor da descoberta da noite, a badalação, os tempos em que os Jardins transbordavam vida gay. Os bares da Consolação, as boates, a Ouro Fino, a excitação em cada calçada. A espera pelo fim de semana. Entrar no Ritz, o ponto de encontro oficial para os drinks pré-balada, empurrar a porta giratória e imaginar que um milhão de flashes se voltavam para a minha pessoa, que naquele momento eu estava no centro de tudo. A gente sonha e fantasia um bocado quando é novinho, mais tarde percebe que havia ali várias ilusões, mas são ilusões gostosas.
O meu début no Rio de Janeiro, a minha primeira turma carioca, da qual hoje não sobrou ninguém. As inesquecíveis festas X-Demente na Fundição Progresso: aquele cenário de sonhos, o pé-direito colossal, a luz da manhã entrando pela clarabóia e iluminando os ladrilhos hidráulicos da pista, coberta por corpos perfeitos dançando a melhor música, encharcados de amor químico - e o meu absoluto encantamento diante de tudo aquilo, especialmente quando deixei de ser um espectador e passei a também fazer parte. Minha viagem para Ibiza, ir à Space, ver de perto os DJs que eram meus maiores ídolos, o fim de tarde numa praia idílica, abraçando meu namoradinho belga dentro das águas cristalinas, acesas pelo pôr-do-sol. Ou então os meus primeiros trabalhos como jornalista, a época em que a revista DOM existia e acontecia na cena. Nunca vou me esquecer da euforia que vivi com os primeiros freelas, de escrever com a maior paixão do mundo, de ver a revista na banca e meu nome ali, e me sentir, pela primeira vez, protagonista da minha história.
Enfim, são tantas coisas marcantes que eu poderia continuar escrevendo parágrafos e mais parágrafos. O curioso é que tenho aos 33 anos um comportamento típico de quem tem 70. Mas é assim que sei viver. Não deixo de olhar para frente, mas vira e mexe lá estou eu com os olhos no retrovisor de novo. Especialmente no final de grandes ciclos, como este. Nesta tarde de sábado, o sol de outono ilumina tudo lá fora e deixa a paisagem ainda mais melancólica, olho para o céu e tento imaginar o que virá amanhã. Não sei. É hora de colocar o pé na estrada e seguir viagem. Que venha um novo ciclo, e que eu possa vivê-lo intensamente, e ser muito feliz.
sábado, 30 de abril de 2011
terça-feira, 19 de abril de 2011
Lúcio e o sexo
Não levem a mal: Lúcio sempre gostou de sexo. Desde que provou o toque, o cheiro e o beijo daquele antigo vizinho, ele soube que precisaria sentir aquela fisgada fatal muitas outras vezes. E assim foi - primeiro nas escadarias do prédio, depois nos antros da vida. Nos últimos tempos, porém, entre uma cervejinha e outra no barzinho habitual da Savassi, ele dizia aos amigos que via o sexo como algo superestimado pela sociedade. Tudo começa e termina nele; sexo é o que faz o mundo girar e as pessoas comprarem roupas, saírem de casa, abrirem a carteira. E se interessarem umas pelas outras, antes mesmo de descobrirem quem são. O resto é balela.
Contra essa realidade, que garantia o emprego de muitos publicitários como ele, Lúcio não lutava. O que ele questionava eram os critérios que determinavam as escolhas no mercado dos afetos. No frigir dos ovos, tudo se reduzia a uma questão de tamanhos e medidas: de peito, de braço, de porte, de dote. O desempate entre os pretendentes se fazia da mesma forma como sua mãe buscava a melhor alcatra entre diversas bandejas embaladas a vácuo no supermercado: analisando aqui, apalpando ali, escolhendo uma e descartando as demais.
E foi justamente no supermercado que a vida de Lúcio mudou. Numa noite de sábado, a caminho de uma festa em Lourdes, o rapaz parou no Verdemar do Sion para escolher um vinho para os donos da casa, umas bichas gentilíssimas e de extremo bom gosto. Lúcio era um ótimo garfo, mas não entendia nada de bebidas, e ficou perdido em meio a tantos rótulos na prateleira. Foi quando percebeu que estava sendo observado. Olhou para a direita e um homem um pouco mais velho do que ele lhe abriu um sorriso luminoso. Alan se apresentou e já foi oferecendo ajuda. Ia ser vinho mesmo? Que tal champagne, um prosecco geladinho numa noite como aquela? Esperto, Alan disse que também iria levar uma garrafa, e convidou Lúcio para um trago sem compromisso. Depois, Lúcio poderia deixar o carro estacionado e ir para a festa a pé, já que o homem também morava em Lourdes.
Poupemos a parte dos galanteios: o que importa é que Lúcio não tinha nada a perder, topou o convite e, ao final da segunda taça, aquele estranho sedutor lhe deu o bote. Transaram, tomaram mais uma, começaram a conversar sobre a arquitetura de Belo Horizonte e perceberam que tinham afinidades. Começaram a sair, e Lúcio descobriu que Alan reunia todos os requisitos para ser o marido ideal. Tinha um ótimo papo, era inteligente, carinhoso, sensível, falava bem - e também sabia ouvir. Curtia bons filmes, nutria a mesma paixão por Barcelona, tinha até morado lá. Arrasava na cozinha, tinha especiarias tailandesas na gaveta e fazia um pesto maravilhoso. Sabia fazer massagem, tinha amigos divertidos e era um companheirão. Valorizava Lúcio integralmente, por dentro e por fora: como profissional, como amigo, como homem. E era bonito. Lúcio não pôde deixar de reparar nos braços de Alan ainda no Verdemar, enquanto ele manuseava as garrafas.
Tudo perfeito, não fosse um pequeno "porém". Se no primeiro encontro a magia do inesperado ajudou tudo a fluir a contento, não demorou muito para Lúcio sentir que havia algo errado. Em poucas semanas, sua libido foi arrefecendo, minguando... e ele percebeu que não tinha tesão no parceiro. O tempo junto dos dois era incrível; a companhia de Alan era tão prazerosa que Lúcio, pela primeira vez, sentiu que não dependia dos amigos para nada. Havia entre os dois um carinho, uma cumplicidade, como se já tivessem se passado meses. Lúcio adorava passar o domingo jogado na cama com ele, abraçado a ele, conversando, ouvindo música e recebendo seus cafunés. Alan, que estava amarradão, queria tudo isso - e também sexo. Mas para Lúcio a coisa não funcionava: os beijos não o excitavam e, quando transavam, ele se sentia cumprindo um débito conjugal. Se o problema estava claro, a ideia de abrir o jogo com Alan - e magoá-lo, e provocar o fim da relação, e perder um cara tão fantástico - também não lhe agradava nadinha. Uma sinuca de bico, como dizia seu tio de Araxá.
Numa noite de terça-feira, Lúcio convocou uma reunião etílica de emergência com Juarez, o melhor amigo que tantas vezes lhe clareava os caminhos com palavras sábias. Juarez veio com sua maneira toda revolucionária de enxergar as coisas. "Quem disse que nós precisamos satisfazer todas as nossas necessidades com a mesma pessoa? Você encontrou um cara que te completa, que combina com você. Um companheiro, num tempo em que isso é raro, que as pessoas não se permitem mais, não se deixam conhecer. Isso é especial! Ninguém é perfeito: o Alan não te realiza por completo, mas realiza de várias maneiras. Ora, viva essa relação no que ela tem de melhor! E o que estiver faltando, você busca por fora. Simples assim! Ou você acha que os héteros não fazem isso? Todo mundo faz, honey! Nenhum ser humano é capaz de esgotar nossos fetiches, nossos desejos, porque eles são plurais e dinâmicos. Você acha que um casamento se mantém pelo sexo? Pois o sexo invariavelmente esfria. Depois que passa a novidade, é o resto que segura a relação. E esse algo mais vocês já têm. Será que você é que não está supervalorizando o sexo dessa vez?"
Como sempre, os conselhos de Juarez não eram fáceis e Lúcio se pôs a digeri-los. Será que ele estava reproduzindo meras convenções sociais, e deixando que elas limitassem suas possibilidades? Querer ter alguém e desejar só essa pessoa, e vice-versa... parecia ser assim com seus pais e com boa parte dos casais. Seria tudo um jogo de aparências? De fato, ele até conhecia alguns casais que defendiam a abertura da relação como forma de sobrevivência do casamento - mas isso vinha depois de anos. Lúcio mal começara o namoro e já não queria mais transar com Alan. Por melhor que soasse o discurso de Juarez, concluiu que não podia aplicá-lo. Não seria justo - nem com Alan, nem com ele próprio.
Quis contar toda a verdade, mas os amigos proibiram: quanta crueldade, não se fala para alguém apaixonado que ele não te provoca tesão! Você vai acabar com ele, seu insensível! Cedeu aos apelos gerais e se saiu com uma desculpa protocolar, do tipo "o gato subiu no telhado". Esperava assim conseguir o impossível: terminar e não machucar, dar um pé na bunda e ganhar um amigo. Afinal, gostava muito de Alan e queria que ele continuasse em sua vida - da porta do quarto para fora. Mas não se pode ter tudo. Por maior que fosse seu empenho, Alan estava com os brios feridos e nunca mais falou com ele. A Lúcio, restou lamentar a perda e encarar a experiência como mais uma bola na trave. Talvez no próximo chute conseguisse finalmente marcar um gol.
Contra essa realidade, que garantia o emprego de muitos publicitários como ele, Lúcio não lutava. O que ele questionava eram os critérios que determinavam as escolhas no mercado dos afetos. No frigir dos ovos, tudo se reduzia a uma questão de tamanhos e medidas: de peito, de braço, de porte, de dote. O desempate entre os pretendentes se fazia da mesma forma como sua mãe buscava a melhor alcatra entre diversas bandejas embaladas a vácuo no supermercado: analisando aqui, apalpando ali, escolhendo uma e descartando as demais.
E foi justamente no supermercado que a vida de Lúcio mudou. Numa noite de sábado, a caminho de uma festa em Lourdes, o rapaz parou no Verdemar do Sion para escolher um vinho para os donos da casa, umas bichas gentilíssimas e de extremo bom gosto. Lúcio era um ótimo garfo, mas não entendia nada de bebidas, e ficou perdido em meio a tantos rótulos na prateleira. Foi quando percebeu que estava sendo observado. Olhou para a direita e um homem um pouco mais velho do que ele lhe abriu um sorriso luminoso. Alan se apresentou e já foi oferecendo ajuda. Ia ser vinho mesmo? Que tal champagne, um prosecco geladinho numa noite como aquela? Esperto, Alan disse que também iria levar uma garrafa, e convidou Lúcio para um trago sem compromisso. Depois, Lúcio poderia deixar o carro estacionado e ir para a festa a pé, já que o homem também morava em Lourdes.
Poupemos a parte dos galanteios: o que importa é que Lúcio não tinha nada a perder, topou o convite e, ao final da segunda taça, aquele estranho sedutor lhe deu o bote. Transaram, tomaram mais uma, começaram a conversar sobre a arquitetura de Belo Horizonte e perceberam que tinham afinidades. Começaram a sair, e Lúcio descobriu que Alan reunia todos os requisitos para ser o marido ideal. Tinha um ótimo papo, era inteligente, carinhoso, sensível, falava bem - e também sabia ouvir. Curtia bons filmes, nutria a mesma paixão por Barcelona, tinha até morado lá. Arrasava na cozinha, tinha especiarias tailandesas na gaveta e fazia um pesto maravilhoso. Sabia fazer massagem, tinha amigos divertidos e era um companheirão. Valorizava Lúcio integralmente, por dentro e por fora: como profissional, como amigo, como homem. E era bonito. Lúcio não pôde deixar de reparar nos braços de Alan ainda no Verdemar, enquanto ele manuseava as garrafas.
Tudo perfeito, não fosse um pequeno "porém". Se no primeiro encontro a magia do inesperado ajudou tudo a fluir a contento, não demorou muito para Lúcio sentir que havia algo errado. Em poucas semanas, sua libido foi arrefecendo, minguando... e ele percebeu que não tinha tesão no parceiro. O tempo junto dos dois era incrível; a companhia de Alan era tão prazerosa que Lúcio, pela primeira vez, sentiu que não dependia dos amigos para nada. Havia entre os dois um carinho, uma cumplicidade, como se já tivessem se passado meses. Lúcio adorava passar o domingo jogado na cama com ele, abraçado a ele, conversando, ouvindo música e recebendo seus cafunés. Alan, que estava amarradão, queria tudo isso - e também sexo. Mas para Lúcio a coisa não funcionava: os beijos não o excitavam e, quando transavam, ele se sentia cumprindo um débito conjugal. Se o problema estava claro, a ideia de abrir o jogo com Alan - e magoá-lo, e provocar o fim da relação, e perder um cara tão fantástico - também não lhe agradava nadinha. Uma sinuca de bico, como dizia seu tio de Araxá.
Numa noite de terça-feira, Lúcio convocou uma reunião etílica de emergência com Juarez, o melhor amigo que tantas vezes lhe clareava os caminhos com palavras sábias. Juarez veio com sua maneira toda revolucionária de enxergar as coisas. "Quem disse que nós precisamos satisfazer todas as nossas necessidades com a mesma pessoa? Você encontrou um cara que te completa, que combina com você. Um companheiro, num tempo em que isso é raro, que as pessoas não se permitem mais, não se deixam conhecer. Isso é especial! Ninguém é perfeito: o Alan não te realiza por completo, mas realiza de várias maneiras. Ora, viva essa relação no que ela tem de melhor! E o que estiver faltando, você busca por fora. Simples assim! Ou você acha que os héteros não fazem isso? Todo mundo faz, honey! Nenhum ser humano é capaz de esgotar nossos fetiches, nossos desejos, porque eles são plurais e dinâmicos. Você acha que um casamento se mantém pelo sexo? Pois o sexo invariavelmente esfria. Depois que passa a novidade, é o resto que segura a relação. E esse algo mais vocês já têm. Será que você é que não está supervalorizando o sexo dessa vez?"
Como sempre, os conselhos de Juarez não eram fáceis e Lúcio se pôs a digeri-los. Será que ele estava reproduzindo meras convenções sociais, e deixando que elas limitassem suas possibilidades? Querer ter alguém e desejar só essa pessoa, e vice-versa... parecia ser assim com seus pais e com boa parte dos casais. Seria tudo um jogo de aparências? De fato, ele até conhecia alguns casais que defendiam a abertura da relação como forma de sobrevivência do casamento - mas isso vinha depois de anos. Lúcio mal começara o namoro e já não queria mais transar com Alan. Por melhor que soasse o discurso de Juarez, concluiu que não podia aplicá-lo. Não seria justo - nem com Alan, nem com ele próprio.
Quis contar toda a verdade, mas os amigos proibiram: quanta crueldade, não se fala para alguém apaixonado que ele não te provoca tesão! Você vai acabar com ele, seu insensível! Cedeu aos apelos gerais e se saiu com uma desculpa protocolar, do tipo "o gato subiu no telhado". Esperava assim conseguir o impossível: terminar e não machucar, dar um pé na bunda e ganhar um amigo. Afinal, gostava muito de Alan e queria que ele continuasse em sua vida - da porta do quarto para fora. Mas não se pode ter tudo. Por maior que fosse seu empenho, Alan estava com os brios feridos e nunca mais falou com ele. A Lúcio, restou lamentar a perda e encarar a experiência como mais uma bola na trave. Talvez no próximo chute conseguisse finalmente marcar um gol.
domingo, 10 de abril de 2011
Jeremy e Wellington
"Lembro-me com clareza de azucrinar o garoto. Ele parecia um merdinha inofensivo. Mas nós soltamos um leão reprimido e deixamos que ele viesse com tudo". Com os versos de "Jeremy", o Pearl Jam ocupava o topo das paradas em meados de 1992. A música, terceiro single do clássico álbum Ten, conta a história de um menino solitário que sofria abusos na escola e não contava nem mesmo com o apoio dos pais. O videoclipe, um dos mais executados pela MTV naquele ano, tem seu ápice na cena final, quando Jeremy entra altivo na sala de aula e, após um corte de cena, seus colegas são mostrados petrificados, com os olhos arregalados de terror e as roupas sujas de sangue. Na história real que inspirou a banda, o garoto se suicida diante da classe, mas quem assiste ao clipe sem conhecê-la tem a impressão de que ele atirou nos colegas.
É inevitável o paralelo com o caso de Wellington Menezes de Oliveira, o rapaz que voltou à escola onde estudara, em Realengo (zonanorte oeste do Rio), e abriu fogo contra vários alunos antes de se matar com o mesmo tiro na boca do Jeremy real. Como era de se esperar, a história chocou o país, teve ampla repercussão internacional (yes, nós também temos Columbine!) e a cobertura pela imprensa lançou mão dos conhecidos clichês que reforçam a comoção e alavancam a audiência. Até Dilma entrou na dança e deu uma choradinha básica em público. Longe de mim querer minimizar a tragédia, a dor diante de tantas vidas eliminadas precocemente, mas me parece que a questão não está sendo colocada no foco correto.
É muito fácil apontar o dedo para Wellington e chamá-lo de monstro. Mais difícil é ir além do óbvio e do superficial, e tentar entender o que teria havido por trás de sua atitude, quais as motivações que levaram a atos tão extremos, tão bárbaros. A luz que melhor ilumina essa questão veio da reportagem "Assassino não atirou a esmo, dizem ex-colegas", publicada ontem no jornal Folha de S. Paulo. No texto, a repórter Laura Capriglione conversa com algumas pessoas que haviam estudado com Wellington. E as revelações feitas pelos entrevistados são decisivas para o entendimento do que realmente foi esse massacre.
"A gente chorou pensando que Wellington matou as crianças em represália pelo que aconteceu quando estudávamos juntos", lembra Thiago, o porta-voz do grupo. "Estávamos na sétima série, os hormônios a milhão, e uma das meninas mais malvadas, a C., ficava pegando no Wellington, se esfregando nele e dizendo 'vem cá'. Ele ficava em pânico, gritava 'não, não, não', desesperado. Ele empurrava a C. e ela gritava cada vez mais alto que queria ficar com ele. C. sabia que zoar com o Wellington era um jeito de ficar do mesmo lado dos bonitos e dos inteligentes da classe", recorda Thiago, hoje com 23 anos.
Segundo o entrevistado, ninguém gostava de Wellington a não ser Bruno, um menino fanho e de voz fina, que era destroçado pelos demais e chamado de "bicha". Ele e Wellington eram ridicularizados o tempo todo. Quando as imagens da chacina ganharam a mídia, Thiago e seus amigos se espantaram ao perceber que as vítimas tinham semelhanças físicas gritantes com os antigos colegas que molestavam Wellington. "A gente teve certeza de que ele não matou a esmo. Ele procurou em cada vítima uma característica das pessoas com quem ele tinha rixa na escola. A L., que falava direto 'sai daí, seu feio' quando queria sentar em um lugar que ele estivesse ocupando, é idêntica a uma menina que ele matou. Outras meninas têm um olho, uma boca, um jeito que parecia muito com as meninas da nossa classe. Temos certeza de que, quando subia aquelas escadas, ele viajava no tempo, até dez anos atrás, quando estudávamos juntos. Nós é que deveríamos ter morrido, não era para ninguém ter pago por uma coisa que nós fizemos", conclui.
Não estou tentando defender Wellington ou endossar seus atos. Eu também sofri bullying na escola a minha vida toda, e nem por isso voltei ao Colégio Friburgo armado até os dentes, para promover um derramamento geral de sangue. Evidentemente, o rapaz tinha sérios distúrbios psicológicos, que sua carta de despedida só faz reforçar. Ele era, sim, um sujeito desequilibrado. As crianças que perderam suas vidas ou mesmo foram baleadas não tinham absolutamente nada a ver com os traumas passados do assassino. Tampouco suas famílias. Mas a discussão está sendo desvirtuada.
Mostra-se o caso como uma questão de segurança pública, mais um subproduto da criminalidade. Até concordo que a facilidade com que o rapaz teve acesso às armas merece preocupação das autoridades. Mas a violência de que estamos falando aqui é outra: a violência silenciosa, que acontece diariamente dentro das escolas - da qual Wellington foi, antes de tudo, uma vítima. Crianças aprendem muito cedo a ser perversas, e não conhecem limites. Wellington certamente foi humilhado e maltratado por anos, e ninguém saiu em sua defesa ou lhe estendeu a mão. Seu grito de socorro jamais foi ouvido. As escolas, ao lado dos pais, não podem se esquivar de sua responsabilidade em interferir e controlar esse grave problema chamado bullying, que pode provocar feridas permanentes, mesmo que não culminem em um massacre como o de Realengo. Depois que o estrago já foi feito, é tarde demais para que Thiago e seus colegas arrependidos venham derramar suas lágrimas de crocodilo.
É inevitável o paralelo com o caso de Wellington Menezes de Oliveira, o rapaz que voltou à escola onde estudara, em Realengo (zona
É muito fácil apontar o dedo para Wellington e chamá-lo de monstro. Mais difícil é ir além do óbvio e do superficial, e tentar entender o que teria havido por trás de sua atitude, quais as motivações que levaram a atos tão extremos, tão bárbaros. A luz que melhor ilumina essa questão veio da reportagem "Assassino não atirou a esmo, dizem ex-colegas", publicada ontem no jornal Folha de S. Paulo. No texto, a repórter Laura Capriglione conversa com algumas pessoas que haviam estudado com Wellington. E as revelações feitas pelos entrevistados são decisivas para o entendimento do que realmente foi esse massacre.
"A gente chorou pensando que Wellington matou as crianças em represália pelo que aconteceu quando estudávamos juntos", lembra Thiago, o porta-voz do grupo. "Estávamos na sétima série, os hormônios a milhão, e uma das meninas mais malvadas, a C., ficava pegando no Wellington, se esfregando nele e dizendo 'vem cá'. Ele ficava em pânico, gritava 'não, não, não', desesperado. Ele empurrava a C. e ela gritava cada vez mais alto que queria ficar com ele. C. sabia que zoar com o Wellington era um jeito de ficar do mesmo lado dos bonitos e dos inteligentes da classe", recorda Thiago, hoje com 23 anos.
Segundo o entrevistado, ninguém gostava de Wellington a não ser Bruno, um menino fanho e de voz fina, que era destroçado pelos demais e chamado de "bicha". Ele e Wellington eram ridicularizados o tempo todo. Quando as imagens da chacina ganharam a mídia, Thiago e seus amigos se espantaram ao perceber que as vítimas tinham semelhanças físicas gritantes com os antigos colegas que molestavam Wellington. "A gente teve certeza de que ele não matou a esmo. Ele procurou em cada vítima uma característica das pessoas com quem ele tinha rixa na escola. A L., que falava direto 'sai daí, seu feio' quando queria sentar em um lugar que ele estivesse ocupando, é idêntica a uma menina que ele matou. Outras meninas têm um olho, uma boca, um jeito que parecia muito com as meninas da nossa classe. Temos certeza de que, quando subia aquelas escadas, ele viajava no tempo, até dez anos atrás, quando estudávamos juntos. Nós é que deveríamos ter morrido, não era para ninguém ter pago por uma coisa que nós fizemos", conclui.
Não estou tentando defender Wellington ou endossar seus atos. Eu também sofri bullying na escola a minha vida toda, e nem por isso voltei ao Colégio Friburgo armado até os dentes, para promover um derramamento geral de sangue. Evidentemente, o rapaz tinha sérios distúrbios psicológicos, que sua carta de despedida só faz reforçar. Ele era, sim, um sujeito desequilibrado. As crianças que perderam suas vidas ou mesmo foram baleadas não tinham absolutamente nada a ver com os traumas passados do assassino. Tampouco suas famílias. Mas a discussão está sendo desvirtuada.
Mostra-se o caso como uma questão de segurança pública, mais um subproduto da criminalidade. Até concordo que a facilidade com que o rapaz teve acesso às armas merece preocupação das autoridades. Mas a violência de que estamos falando aqui é outra: a violência silenciosa, que acontece diariamente dentro das escolas - da qual Wellington foi, antes de tudo, uma vítima. Crianças aprendem muito cedo a ser perversas, e não conhecem limites. Wellington certamente foi humilhado e maltratado por anos, e ninguém saiu em sua defesa ou lhe estendeu a mão. Seu grito de socorro jamais foi ouvido. As escolas, ao lado dos pais, não podem se esquivar de sua responsabilidade em interferir e controlar esse grave problema chamado bullying, que pode provocar feridas permanentes, mesmo que não culminem em um massacre como o de Realengo. Depois que o estrago já foi feito, é tarde demais para que Thiago e seus colegas arrependidos venham derramar suas lágrimas de crocodilo.
quarta-feira, 6 de abril de 2011
Camaleões
O novo filme estrelado por Wagner Moura, VIPs, confirma não só a extrema versatilidade do ator baiano (a quem finalmente me rendi), como a boa fase que o cinema brasileiro está vivendo. Inspirado na mesma história real que deu origem ao livro Histórias Reais de um Mentiroso, o longa mostra a trajetória de Marcelo, um jovem com distúrbios de comportamento que, na busca pelo seu sonho de se tornar piloto de avião, vai assumindo diferentes personalidades, até se fazer passar pelo filho do dono da empresa aérea Gol, o que lhe rende até uma entrevista na TV com o apresentador Amaury Jr. A narrativa é bastante ágil e dinâmica, e Moura consegue fazer de seu farsante destrambelhado um personagem crível e bastante envolvente - é impossível não torcer por ele a cada nova artimanha que sai de sua cabeça criativa e fantasiosa. O filme evidentemente mostra um caso extremo, mas, em diferentes proporções, essas pessoas estão por toda parte. São políticos que assumem uma postura pública contrária a atitudes que eles mesmos exercem em suas intimidades. São amigos interesseiros que vêm pedir favores pelo Facebook, mas depois passam reto e fazem a egípcia na boate. Seja por necessidade ou por interesse, o ser humano é um notável camaleão, que em cada situação ou ambiente veste o disfarce que melhor lhe convém. Poucos conseguem ir tão longe quanto Marcelo, o rapaz que se tornou, na mesma medida, beneficiário e vítima de sua imensa cara-de-pau.
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