
Vou ilustrar com alguns exemplos. Por alguma razão que eu desconheço, eu me espelho um pouco na Dra. Addison, de Private Practice. Tem alguma coisa na Meredith de Grey's Anatomy que, sei lá, também tem tudo a ver. Não acho que eu ande, fale ou sorria parecido com nenhuma delas. Talvez seja o papel que cada uma ocupa nas respectivas tramas: em Desperate Housewives, por exemplo, não tenho como não me enxergar na desajeitada Susan, que é um poço de boas intenções e só se fode - ela é um mulherão, mas nunca se dá conta disso. E naqueles momentos críticos, em que me sinto inadequado e sem nenhum brilho, a imagem que me assombra é a da protagonista de The New Adventures of Old Christine [que além de ser uma perdedora, é chata pra caramba]. O mais curioso é que, de todas essas personagens, eu não conheço sequer a voz, pois só vejo seriados quando corro na esteira da academia, em frente aos televisores sem som.
Mas nenhum clique foi tão forte quanto o que eu tive no começo do mês, quando vi Cisne Negro. O filme em si é tenso, desconfortável, angustiante - se eu soubesse que era um sufoco tão grande, certamente teria evitado, pois não é o tipo de sensação que busco quando vou ao cinema. Mas a história da bailarina Nina me ofereceu um surpreendente encontro comigo mesmo. Angelical, pura, virgem, Nina é delicada, fala baixo e tem um quarto rosinha e cheio de bichos de pelúcia. Exímia bailarina, é totalmente caxias, nunca se diverte, cobra demais de si o tempo todo. Quando surge a chance de abocanhar o grande papel de sua vida, ela vê que as armas que possui não serão suficientes. Ela domina a técnica, mas é tímida, travada. Para encarnar uma personagem que encerra em si a dualidade entre Branco e Negro, ela terá de crescer para fora da casca, enfrentar seus medos e aprender a ser safa e sensual. Na marra.
Tudo fica ainda mais claro (e complicado) quando aparece Lilly, colega que irá cruzar o caminho de Nina e tentar tomar o seu lugar. Lilly é o completo oposto de Nina. Gostosona, cheia de viço, relaxada, sensual, segura e dona de si. Não tem um pingo de técnica, mas tem tesão, justamente o que falta à Nina. Como aquele sujeito que foi mau aluno a vida toda, mas encontrou outro jeito de se destacar e hoje ganha muito mais dinheiro do que o colega cdf, que ficou no limbo. Na (má) companhia de Lilly, Nina pela primeira vez ousará ser menos certinha, pensar menos e viver mais, se jogar de cabeça, se entregar ao sexo, virar gente grande.
Mas a virada definitiva acontece quando a doce bailarina percebe que a colega, na verdade, está tentando puxar o seu tapete. Nesse momento, cai a ficha de Nina e ela vê que precisa aprender a se impor, o que significa promover uma ruptura dolorosa e definitiva com sua inocência e tudo o que ela sempre soube ser. Numa verdadeira catarse, a heroína manda a mãe superprotetora à merda, joga os ursinhos de pelúcia no lixo e vai enxergando brotar de dentro de si a força adormecida de que precisava - o Cisne Negro, quente, poderoso, sensual, arrebatador.
Enquanto a história se desenrolava, iam surgindo na minha frente inúmeros paralelos entre Nina e eu, a minha vida, o meu temperamento, os meus desafios, a minha autocrítica implacável. A dor de ter que crescer, se autoafirmar, mostrar as garras, enfrentar os holofotes. Lidar com o fato de que existirão pessoas que irão querer o meu lugar, o meu ouro e a minha cabeça, e eu terei que aprender a atacar também. Deixar de lado o anjo, o bom, o virtuoso, e exercitar o mau, o sacana, o puto. Ficar esperto e aprender a falar grosso - mesmo sendo tão sensível. Afinal de contas, "a última boazinha - coitada! - morreu na linha do trem". Apesar dos engulhos que o filme provoca, ver-se retratado com tanta fidelidade fez valer o preço do meu ingresso. Acho que finalmente pude entender o sentido da palavra epifania.