Como eu ia dizendo no post anterior, foi em 1998 que eu troquei a esfiha pelo kibe e comecei a freqüentar a noite. Mas não foi só na minha vida que esses dez anos trouxeram transformações. Quem olhar para trás e comparar o nosso mundinho de hoje com o daquela época verá que muita coisa se alterou, entre padrões de beleza, hábitos sexuais, modismos e costumes - isso sem falar da maior visibilidade que os gays conquistaram na mídia e na sociedade. Nesse meio tempo, o modo de se fazer noite gay também mudou.
A primeira grande diferença que salta aos olhos: há dez anos atrás, os gays paulistanos iam a bares, para ver e serem vistos. Na rua da Consolação, antigo epicentro do babado, o Pittomba, o Papparazzi, o Garden e o Allegro marcaram época como concorridos pontos de encontro e ferveção. Mas esses bares não deixaram sucessores que cumprissem o mesmo papel: o de lugares para beber, ouvir música, dar pinta e paquerar, num ambiente menos mega e mais intimista do que o de uma boate. O L'Open (dos antigos sócios do Allegro) até poderia chegar perto, se não fosse tão escuro (o ambiente não favorece os contatos visuais) e tão parado (afinal, é um bar-restaurante, onde todos ficam sentadinhos nas mesas). Sem falar que o crème de la crème dos homens bonitos simplesmente não freqüenta o lugar - alguns até vão ao Ritz, mas esse é um lugar que não se assume como bar gay (tanto que chegou a pedir que os casais gays não se beijassem lá dentro). Não existe mais o hábito de bater perna na rua e zanzar por bares antes da balada - em vez disso, as pessoas passaram a fazer "esquentas" (ou chill ins) na casa dos amigos.
Em relação às boates, é nítido que o modelo "anos 90" praticado em lugares como a Gent's, a Disco Fever, Mad Queen e a SoGo foi deixado de lado. O som era escancaradamente pop, com direito a muito vocal, hinos clássicos como "It's Raining Men" e remixes mínimos (como em "Feel It", o grande hit das pistas em 1998). Apresentações de drag queens e go-go boys tinham papel de destaque - nas casas do então "rei da noite" Sérgio Kalil, a música era interrompida e as pessoas paravam de dançar para ver os shows. O mesmo acontecia na Le Boy, no Rio. Uma certa inocência pairava no ar. Drogas? Só dentro do banheiro e, ainda assim, nas mãos de uma meia dúzia de pessoas (os "drogados", que horror!), que davam seus tirinhos de pó. Em geral, fazia-se mais sexo (e usava-se mais camisinha).
Com a ascensão da festa X-Demente, no início desta década, a cultura barbie explodiu no eixo Rio-São Paulo. Os anabolizantes e as drogas sintéticas mudaram completamente a cara das nossas pistas. O som ganhava um componente eletrônico crescente, com DJs deixando de ser funcionários anônimos e ganhando importância e notoriedade. A B.A.S.E. foi o primeiro clube a viver essa transição; em 2001, Sérgio Kalil abriu a Level, consolidando o formato em São Paulo. Mais tarde, a The Week daria o arremate final à fórmula, inaugurando um novo padrão de infra-estrutura e serviço e podando as referências caricatas que haviam se tornado datadas e cafonas - os shows que Kalil adorava. Afinal, ninguém mais queria saber deles: na nova ordem da noite, o que importava era dançar sem parar, para a droga "bater". Pegação? Enquanto só se tomava ecstasy, todo mundo ficava "fofo", se beijava e fazia trenzinho - 2001 foi o "verão do amor". A chegada do K e do GHB significou mais loucura e menos sexo: as pessoas se distanciaram umas das outras, em viagens cada vez mais individuais - que, não raro, terminavam com elas voltando sozinhas pra casa.
Muitos embarcaram nesses novos tempos com os dois pés e sem olhar para trás. Mas outros tantos não se identificaram com as novidades e sentiram falta de espaços mais sadios e relaxados, onde pudessem conhecer gente nova à moda antiga: olhando no olho, abordando, conversando, seduzindo. Para essas pessoas, que se sentem deslocadas em meio à ditadura do corpo e ao hedonismo químico, a salvação veio com a Cantho, onde a diversão funciona da mesma forma que numa Gent's ou Disco Fever. E as bibas iniciantes, que ainda não seguram a onda de uma arena cheia de touros ensandecidos como a The Week, podem escolher entre a Tunnel e a SoGo, que pararam no tempo (se bobear, a Tunnel ainda toca "Uh La La La" da Alexia), ou a Bubu e a Flex, espaços mais atualizados, com freqüência mista e clima leve.
O mais curioso, porém, é que existe uma boate que consegue agradar aos baladeiros da "moderna" geração TW sem perder os laços com a tradição e o passado: a Blue Space. O casarão azul da Barra Funda sobreviveu ao tempo sem se desvirtuar e, sobretudo, sem deixar de lado os shows, que sempre foram sua marca registrada. Não é para menos: suas superproduções musicais, com performances e figurinos tão extravagantes quanto impecáveis, e seu carismático elenco de drags, com esquetes teatrais ágeis e engraçadas, conseguiram cativar até mesmo aqueles que habitualmente não gostam de shows. Mesmo sabendo que tem em mãos uma fórmula consagrada, o lúcido dono da Blue, Victor Sofredini, faz sua parte para manter a longevidade da casa: foge de intrigas com a concorrência, investe em um potentíssimo sound system e mantém seus DJs atualizados musicalmente. O resultado são 12 anos de casa cheia - que serão comemorados hoje às 16h00, com a tradicional partida de futebol entre as drags e os funcionários machos da casa, seguida pela matinê mais querida da cidade. Não é fácil manter-se em alta por tanto tempo em uma cena ávida por novidades como a paulistana. Parabéns à Blue Space!
31 comentários:
Um raio-X impecável...
E a Blue merece a homenagem!
Bjus.
Cris ;-)
Rigorosamente perfeito. Você conseguiu traçar com rapidez e extensão dez anos de noite paulistana, quase o mesmo tempo que vivi, algumas vezes na sua companhia.
Espaço para minha teoria pessoal: o início da época das drogas foi a transição do auge da SoGo para a novidadeira Ultralounge - uma casa que não tinha dark room nem muitos espaços pegativos. Era quase como a D-edge até algum tempo atrás: ficar com alguém era sinal de lama. Foi a época da introdução forte do E no Brasil. Aí as pessoas prescindiram dos contatos carnais na balada e acabram embarcando na fofolice de mdma. Daí pro resto foi um passo.
Abraços, queridão!
só fui uma vez à Blue.. e gostei bastante.. foi la q vi pela primeira vez show de drag.. fazendo humor e dança..
parabéns pra casa!
temos idades próximas, eu 30, moramos um tanto distantes, eu em BH, e vez ou outra busco refúgio no Rio, Sampa, Floripa, BsAs, e a minha insatisfação com a TW e cia é a mesma sua e de tantos outros. Onde estão os não drogadÍSSIMOS, os menos egoístas que preferem a companhia à solidão dos sintéticos? Tenho saudades da paquera e do namoro de outrora, dos bares sempre tão comuns em minha cidade que mesmo provinciana como é tb tem sua casa de barbies autistas que é a mais badalada e a mais sem graça da cidade... será que somente nós curtimos esse olho a olho entorpecido no máximo com cerveja e cigarro da década de 90? Parabéns pelos seus textos! Carlos Henrique, de BH.
E o post de 10 anos de cinemão, glory hole, pegação no autorama, saunas e afins vem na sequencia?
ps: o aruivo das musicas do glam eh unico, a disponibilidade do arquivo eh unicol, com toda as musicas grudadas na bunda da outra, so clicar la e fazer o down!
Senti uma certa nostalgia ao ler esse texto, sua e minha. Mas foi inevitável reparar que passei por esse turning point sem repará-lo muito bem, e que só com seu balanço eu me toquei de verdade. Quando comecei a sair, em 96, já se falava muito em E, mas realmente ainda havia uma certa ingenuidade no ar, que hoje ninguém tenta manter, ainda que ilusoriamente. Não acho que o culpado seja um clube ou outro; acho que foi uma mudança coletiva de comportamento mesmo. Triste.
Cara, concordo com você em gênero, número e grau. Sou de POA e comecei a frequentar a noite gay em 2002. Posso lhe dizer q lá a noite sofreu essa transformação com alguns anos de atraso. Agora todas as festas e boates, querem copiar o estilo TW de ser, claro q ficam bem atrás mas a inspiração(ou cópia) é clara. Estou em Sampa desde 2006. E sinto falta da época de paquerar um carinha na balada, conversar e ver um show de drag abraçado com ele. Agora a maioria fica nos 3 minutos máximo de beijo na boca sem perguntar o nome, sem camisa, e tão rápido assim pois a bala está batendo. luislm@uol.com.br
Ótimo resumo da transformação pela qual a noite sofreu. Apesar de não ter vivenciado a primeira fase mencionada, tenho idéia de como se deu essa mudança. Só acho que a cena não deveria se fechar tanto num estilo próprio e apresentar idéias novas.
Ei, otémooo pots..mas acho que faltou mencionar as classicas domingueiras da Alôca...ou foi proposital!?
bjoo
Concordo com o comentário do Xande. Evoluir não é singularizar, é ser plural, aberto ao novo e em constante crescimento, pois, acredito que, quando a coisa verticaliza, ficamos, literalmente, sem horizonte, e perde também aqueles que gostam da mesmice.
Muito legal esse post.
Eu não passei pelas baladas gay dos anos 90 para sentir saudades.
Quando comecei a sair já desemboquei no Base e na Ultralounge.
Se por um lado é indiscutível que a TW elevou o padrão de balada gay em São Paulo e no Brasil, por outro junto com a TW veio essa disseminação do E, não que seja culpa do lugar em si, é a época em que vivemos. Basta olhar nas próprias baladas hetero ou nas inúmeras Raves de Psy que rolam por ae........
Faltou mencionar Aloca, D-edge( que de sexta é bem gay, não sei quem acha que bjar lá é lama) e o Vegas que também teve la seu período de auge em 2005/2006.
Abraços
Daniel
Eu não mencionei A Lôca, D-Edge, Vegas e Glória porque não considero esses lugares como "boates gays". A proposta desses clubes não é focada no público e na cultura gay, mas sim na música eletrônica; assim, eles são freqüentados por pessoas interessadas no conceito musical das suas diferentes noites, sejam héteros ou gays. Basta comparar os flyers para entender a diferença.
Thiago:parabéns pelo texto.Ótima panorâmica da cena gay nos últimos 10 anos. Seus posts são um tanto escassos mas vale cada minuto de espera. abrs
Thiago, que viagem no tempo, delicioso post!
O difícil é lembrar daquelas boates que não vingaram ou que tiveram uma vida muito curta:
e-male, bloom!, naja, the club (campinas), e tantas outras...
Antes do meu debut, vi a Disco Fever pela tv no auge da era clubber. Depois que conheci, não achei nada demais, só era impressionante a fila do DR, o povo se jogava mesmo.
Mas resumindo, era uma época inocente mesmo, não volta mais.
Ok Introspective.
Acho que esqueci que um blog é uma coisa pessoal, que você vai postar baseado em suas opiniões e tal.
Apenas coloquei minha opinião, minha vivência, que como de muitos por ae pode estar baseada em locais como A Lôca, D-Edge, Vegas e Glória. tcha tcha tcha p vc! ;)
Seus comentários e opiniões são sempre muito bem-vindos, Daniel! Espero que minha resposta não tenha feito parecer o contrário. Não quis soar indelicado, apenas explicar por quê eu não tinha colocado aqueles lugares no meu texto. Aliás, todos eles também fazem parte da minha vivência - em certas épocas, até bem mais do que as "boates gays"! ;)
Amigo, amigo, adorei o texto! 10 anos em alguns parágrafos de muita precisão, muito estilo e muitíssimo charme. Saudade e beijos!
quanta baboseira!
tá só escrevendo merda.
Amigo... Sou obrigado a admitir que esse post aumentou a minha esperança em relação ao público gay. Sempre me senti deslocado (desde a época do B.A.S.E) e, na época, não entendia o porque do perfil da noite paulistana ter mudado tão drasticamente. Mas, depois de um tempo, percebi exatamente o que havia ocorrido. Sei que pode parecer retrógrado, mas (como você) ainda prefiro a dinâmica antiga, com direito a paquera, conversa e troca de idéias. O que se vê hoje nos lugares é muita mordeção de beiço e cheiro de G no ar... Onde estão as pessoas de verdade?
E mais uma coisa... Também acho que o tipo de som que toca nos lugares tem um papel importante. Gosto de festas que tem um perfil musical mais moderno e curto ver os DJs (de verdade) tocarem. Me irrita um pouco ver o Offer Nissim chegar com um set pronto e ficar batendo cabelo... Enfim, se eu quiser ir a um lugar GAY hoje, é isso que tem pra se ver.
Não vejo pra que tanto saudosismo, se você mesmo lista todas as opções disponíveis. Se não gosta de um lugar, vá para outro. Se não curte isso ou aquilo, a cidade está cheia de lugares onde se usa aquilo ou aquilo outro. Existem até bares e bate-pernas por ai, que vc não citou, talvez por preconceito de não ser bem visto pela turma da TW, que vc frequenta pelos cantos. Na verdade, o que você gostaria mesmo, era de ser uma barbiezona feliz, no meio da pista, bem louca e bombada. Mas isso não é para todos. Continue escrevendo. E caçando no disponível.
Anônimo: Concordo com você que a cidade está cheia de opções. E acho que em muitas coisas nossa noite hoje é bem mais legal do que há dez anos atrás. A própria TW é um exemplo disso. De resto, você apenas demonstrou que não me conhece. Achar que tudo o que eu posso querer da vida é ser só mais uma barbie "bem louca e bombada", como tantas outras por aí... só mostra que vc realmente não sabe nada a meu respeito. Não queira estender aos outros a sua estreita visão do mundo.
intro, li no tony goes sobre o podcast..! parabéns! não sei bem o que é isso (reportagens, como as de rádio, on demand?) mas vou descobrir TUDO pra ouvir você! você é uma DELÍCIA DE LER... deve ser DELÍCIAR MAIOR DE OUVIR. beijo grande
Engraçado e curioso notar como as pessoas só conseguem enxegar as coisas a partir do momento que entraram na cena. Aí se equivocam e dão como certo apontar e classificar algo antigo como novo e vice-versa. enfim, equívicos. Boa a idéia de fazerum corte transversal na noite gay nos últimos dez anos, mas um pouco mais de pesquisa, conversa e conhecimento ajudariam muito. e sobre o Ritz, muito cafona e provinciano dizer "um bar que não se assume". É preciso maior visão e conhecimento de causa quando se tenta um passo maior do que simplesmente postar sobre assuntos corriqueiros e a escassez de conteúdo da cena gay local. Em todo caso, vale a tentativa.
mm: A intenção desse post foi justamente enxergar as coisas a partir de quando eu entrei na cena, já que o gancho do texto anterior foi meus dez anos de noite, completados recentemente. Claro que eu poderia ter feito um trabalho extenso de pesquisa, conversando com personalidades da noite que habitaram a cena paulistana desde os anos 70, do João Silvério Trevisan à Erika Palomino (passando também por você, é claro) e formular uma tese de mestrado. Mas não era essa a idéia - não aqui no blog, quem sabe numa reportagem para a DOM. Quanto à maior visão e conhecimento de causa, tenho a humildade de não me considerar nenhuma autoridade no assunto, e sei que, com o passar dos anos e o acúmulo de novas vivências, a minha visão vai se tornar mais ampla. Como a sua, talvez. No mais, agradeço pela sua visita e interesse no meu blog.
Tiago, excelentes posts, como sempre. Faz cada um pensar acerca de sua própria história, também..
querido, estarei no rio durante a semana santa, que tal um post com os comentários do que vai rolar de bom no RJ e SP ?
bjao
Viu
seria legal contar as historias engracadas que voce citou no podcast do sergio ripardo...
tem sempre varias historias, micos e etc, "causos"
que quem nao e do meio ou mesmo que e fica de fora.
seria bacana e engracado saber
;) uma dica
se voce por acaso fizer isso ou alguem souber de um site me envia email
kylenorthside@hotmail.com
valeu
caramba....frequento a noite gay desde 1987 e passei por toda esta transformação...adorei o tecto! Apesar de adorar o "estilo The Week" da noite gay atual e seus "quimicos", e sua consequente solidão.... sinto falta sim, da troca de olhares, das conversas, da "paquera".... parabéns
Eu que comecei a sai mesmo só em 2003 não tive a opção de conhecer essas outras baladas.
Mas as vezes me cansa essa cultura de mega balada gay.
Não conheço a Blue, Tunnel e o Ritz.
Ah, no Paparazzo eu fui muito no almoço, mas aí não vale.
A noite sempre foi uma faca de dois legumes: ou vc encara pra valer e segue a cartilha ou se tranca em casa e faz a linha caseira. Olhando pra tras, podemos ver que a noite seja ela straight ou gay sempre seguiu essa formula: modimos de epoca, que assim como qualquer outra coisa nessa vida, vai e volta.
Engracado como agora o Brasil esta vivendo o que nos EUA eh praticamente o fim de uma era. Em NY, as famosas circuit parties hoje estao praticamente extintas. A Roxy, que marcou uma geracao, foi fechada, Limelight e varias outras. Ainda existem as famosas festas all over the country, mas nada como o fim dos anos 90 e o comeco do milenio, onde estar no dance floor era praticamente um sinal de status.
Brother, a muito não lia algo com anta propriedade... bem escrito e pontual! maneiro mesmo! Foi como se um "filme" passasse na minha cabeça. Eu, como vc, tambem completo 10 anos de vida gay esse ano coincidentemente...
Descobri teu blog pelo podcast da Folha, nem pedirei pra q vc "continue escrevendo" pq isso com certeza tu irá fazer... mas o q garanto é q não conseguirei deixar de passar por aqui...
é véi, tu ganho mais um leitor!
Té mais véi...
(vou TER q reler teu post, brou... é muito louco como, relendo, relembro de detalhes q já nem lembrava ou me passavam despercebidos!)
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